A vida de uma brasileira no teatro suíço
Não se admire se, durante à peça "Bin ich Angekommen?" (Eu cheguei?, em português), achar que partes do texto foram inspiradas em sua vida. Assistir ao monólogo escrito a partir da experiência da baiana Katia Hofacker, que reside na Suíça desde 2004, tem mesmo esse objetivo.
É um convite ao olhar através do espelho, ao questionamento da realidade migratória de cada um e à superação dessa vivência, tão rica e desafiadora ao mesmo tempo.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
Escrita e dirigida pela alemã Jasmin Hoch, a peça é encenada pela própria fonte de inspiração, Kátia Hofacker. O texto em alemão, que já fez a atriz chorar nos ensaios, traz à tona as dificuldades enfrentadas por essa baiana, mas também por milhares de migrantes que deixam seus países e se veem perdidos, lidando com questões identitárias, com poucas chances no mercado de trabalho e com todos as diferenças culturais que vêm junto com a mudança. “O meu sotaque ao interpretar é o meu diferencial nesse país. Quero que quem assista saia com essa mensagem. Somos diferentes, mas essa é a nossa vantagem”, diz.
A montagem é inusitadamente encenada em um salão de cabeleireiro, apresentada enquanto a atriz tem cabelo e unhas feitos. Bin ich angekommen? é uma produção do Teatro MaximLink externo.
A peça integra o Festival Intercutural de Teatro de Zurique, o About UsLink externo, que acontece entre os dias 6 e 21 de setembro na cidade.
Informação:
Apresentações dias 9 e 11 de setembro – 20 horas.
Local: Fórum Brasil, Langstrasse, 21 – primeiro andar
Gratuito – necessário fazer reserva Link externo
swissinfo.ch: A peça é um monólogo sobre sua vivência aqui na Suíça. No que exatamente foca o texto?
Katia Hofacker: Claro que é a visão da autora sobre a minha vida. É um texto biográfico, fruto de uma série de entrevistas, que conta minha história desde quando eu cheguei à Suíça, em 2004. A Jasmin conseguiu captar a essência dos meus desafios. Como é uma diretora experiente, colocou com primazia na linguagem teatral.
Falo sobre diversos pontos da minha vida de estrangeira, que com certeza deve ter muitas semelhanças com a de muitos outros que migraram. Entramos no campo do “eu me sinto em casa?” O que significa para mim me sentir em casa?
Temos sketches sobre a dificuldade com a língua alemã, que é a minha maior barreira. Aliado a esse obstáculo, vem a ameaça à minha carreira de atriz, mas que vem sendo construída a duras penas.
Abordo momentos em que eu questiono a minha decisão de viver fora do Brasil, em que sofro muito com os inúmeros nãos que recebi, a maternidade no exterior, a necessidade de relação com os suíços, quase que como uma bola mestra para entender a cultura desse país. Esse fio me conduz à dificuldade de se fazer amizade com eles. E por aí vai. Mas a peça não é um mar de lamentações, é um convite à reflexão. Tem partes cômicas, incentivo o público a participar.
swissinfo.ch: E como se desenvolve a peça? Explique um pouco sobre a encenação em um salão de cabeleireiro.
K.H.: Como o espetáculo acontece dentro de um salão de beleza, enquanto eu falo o texto, profissionais farão meus cabelos e unhas. Eu vou contar minha história como se fosse uma conversa de salão mesmo, como se eu estivesse dialogando com o cabeleireiro.
Acho a proposta interessante porque o ambiente é muito brasileiro, faz parte do nosso cotidiano. E ali, durante a explanação, eu rio, eu choro, eu teorizo, sempre em alemão. Mas o resto eu não vou contar por que é surpresa.
swissinfo.ch: E quem é a Katia, como ela se enxerga nesse contexto?
K.H.: A Katia (risos) é uma atriz baiana negra, mãe de duas crianças, que veio parar em Zurique por amor. Essa mudança deu uma reviravolta em sua vida. Até aqui, muito parecido com a maioria das brasileiras que moram na Suíça e que vieram porque encontraram um marido, um parceiro local. Só que a partir daí é que o bicho pega.
Eu sou uma pessoa que ama o teatro, sempre estive envolvida de alguma maneira com a atuação. A minha primeira formação é de psicóloga, mas posteriormente fiz várias formações em Teatro, ainda em Salvador. Morei durante um ano em Paris para estudar na Escola de Teatro de Jacques Le Coc.
A barreira da língua alemã, entretanto, veio para cortar minhas asas. Pelo menos era como que eu via. Até eu entender que não necessariamente deveria ser assim. Em 2010, eu conheci o teatro Maxim de Zurique, que promove a diversidade. Aí tudo mudou.
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Então, eu acho que a Katia é uma brasileira que nadava contra a maré e hoje usa a correnteza para se reinventar.
swissinfo.ch: E como você se reinventa? Como usar essa correnteza a favor?
K.H.: Em um determinado momento da minha caminhada, depois de sofrer muito por não falar um alemão perfeito, de levar tantos nãos, eu descobri que a minha maior ferramenta era ser exatamente quem eu sou. Eu sou estrangeira e não posso mudar.
Não adianta querer falar igual ou competir com os suíços. Então, falar com sotaque é o que me torna diferente. Isso dá poder. A coragem vem de você usar a sua matéria-prima, que é você mesma.
Até o fato de eu converter minhas dificuldades, meus dilemas e anseios em monólogo é um exemplo de como eu me transformo no meu próprio insumo.
Acho que a minha vivência de teatro me ajudou muito a transformar dificuldade em arte, em uma ferramenta para dar voz a uma comunidade enorme que passa pelos mesmos desafios, mas que nem sempre encontra acolhida para expor o que sente.
swissinfo.ch: E qual a mensagem que você e a diretora gostariam de passar ao público?
K.H.: A da possibilidade de transformação. Entre as missões que tenho, enquanto estou no palco, não cabe só a de entreter. Quero mostrar a capacidade de rir das nossas gafes, de conviver com as diferenças e transformar os nãos em novos caminhos nunca pensados. É uma responsabilidade social, não é?
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