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A fascinação dos suíços por produtos usados

Curiosos passeiam pelo mercado de pulgas da escola Rudolf Steiner. swissinfo.ch

Com uma renda per capita quase quatro vezes maior que a média brasileira, os suíços poderiam se dar ao luxo de consumir com muito mais extravagância que os excêntricos turistas de Miami - especialmente durante a febre de presentes típica do Natal.

Boa parte das famílias de classe média e alta, entretanto, opta cada vez mais pelos eventos de troca, feirinhas, brechós e sites de usados na hora de escolher os presentes. Mais do que só adquirir um mimo, os pais querem aproveitar a oportunidade para ensinar valores às crianças.

Uma iniciativa que ilustra bem essa mudança de percepção na época natalina é um evento que ocorre anualmente na cidade de Basiléia e promove a troca de brinquedos entre crianças de três a dez anos de idade de todas as classes sociais. A “Bolsa de Troca de Presentes”, em tradução livre, ocorre há 19 anos.

Muito embora tenha começado como uma ideia para auxiliar famílias de desempregados, a bolsa é hoje em dia amplamente abraçada pela comunidade, contando com a participação de alunos de prestigiosas escolas internacionais particulares e o patrocínio da cadeia de supermercados Migros.

Capacidade de consumo

Segundo dados do governo da Suíça, divulgados em novembro e calculados com base em números de 2014, uma família média dispõe mensalmente de CHF 7.176 de capital para consumo.

O cálculo é feito da seguinte forma: soma-se o salário de todos os adultos da família, os benefícios sociais, os dividendos financeiros e de alugueis que tenham a receber. Deduz-se então os custos fixos obrigatórios como seguro social, impostos e seguro saúde compulsório. A diferença é o capital disponível para consumo.

É com esse dinheiro que famílias compram supérfluos, como os presentes de Natal. A cada mês uma família suíça padrão gasta CHF 217 com roupas e calçados, CHF 571 com recreação e cultura, CHF 557 com hotéis e restaurantes e CHF 305 com outros serviços.

Hans-Georg Heimat, um dos coordenadores do projeto, explica que “é importante as pessoas se conscientizarem e não jogarem fora os brinquedos a cada ano. Faz muito mais sentido trocá-los por algo”, diz.

A intenção é promover noções de sustentabilidade com as crianças em três frentes: social, ambiental e econômica. Socialmente, os pequenos aprendem a compartilhar e se desapegar, desenvolvendo solidariedade e empatia. Ambientalmente, eles compreendem que recursos devem ser racionalizados e reciclados, evitando o desperdício. Economicamente, eles assimilam que é possível trocar e poupar ao invés de comprar.

O projeto funciona da seguinte maneira: nas semanas que antecedem o Natal, os organizadores recolhem doações em diversos locais e datas. Ao doar, cada criança recebe o direito de retirar um brinquedo no grande dia da “bolsa” e garante o mesmo direito a uma criança carente. Os brinquedos são consertados e preparados para que tenham um aspecto de novo e, então, no dia 21 de dezembro são expostos na Igreja de Santa Elizabete, no centro da cidade. Nesse dia, os pequenos podem escolher livremente o presente que quiserem.

O salão da igreja ganha ares mágicos, conta Heimat. “É muito interessante de se ver. Os brinquedos estão consertados e as crianças ficam maravilhadas. É como se fosse uma grande loja, onde tudo é de graça. Elas reveem os próprios brinquedos com novo interesse”, descreve.

Educação

Valérie Nordmann é professora na Swiss International School e explica que apresentou o projeto aos seus alunos porque viu na oportunidade uma forma de ensinar valores para a vida. Ela é mãe e também pratica em casa o exemplo do consumo racional. “Compro presentes usados para o meu filho. Ele não se importa. Se ele se diverte da mesma forma”, reforça.

Daniele Herr têm duas filhas de sete e nove anos. As meninas adoram passear em bazares e mercados de pulgas. Elas participam ativamente de iniciativas de doação dentro da comunidade e da família, repassando aos primos objetos e roupas. “Eu gostaria que fosse ainda melhor. Minhas filhas pensam que é fácil repor coisas quebradas. Estamos trabalhando para mudar isso”, explicou Herr.

É uma questão de direcionar os impulsos de consumo das crianças para algo sustentável, acredita Daniela Rosemberg, cujo filho de 10 anos e a filha de 6 frequentam uma escola Waldorf, do sistema educacional Rudolf Steiner, conhecido pela filosofia antroposófica.

“Ainda há muitas famílias que optam por produtos comerciais. Na comunidade Steiner isso já é uma minoria, mas na Suíça ainda temos a oportunidade de melhor”, avalia Rosemberg.

Hans-Georg Heimat com o folheto explicativo do evento de troca de presentes. swissinfo.ch

A escola Steiner, localizada no bairro de classe média-alta do Bruderholz em Basiléia, também procura educar por meio do consumo consciente. Anualmente ela organiza um bazar de Natal e um mercado de pulgas, com o intuito de levantar fundos para subsidiar os custos do ensino para toda a comunidade.

Os organizadores explicam que seria possível simplesmente cobrar mensalidades mais caras, algo que boa parte das famílias conseguiriam acomodar nos seus orçamentos, entretanto essa não seria a forma sustentável e inclusiva de encarar o desafio.

Steven Maryns é o voluntário que coordena os eventos há mais de dez anos. Maryns acredita que seu comprometimento serve de exemplo aos filhos, que observam e percebem que há um apreço pelo coletivo.

O empresário estima que o mercado de pulgas é provavelmente o maior do cantão de Basiléia-cidade e conta que também serve de exercício de “desapego” aos participantes. “Posso imaginar que as pessoas que doam objetos não estejam apenas limpando a garagem. Pelo alto valor e qualidade das doações que recebemos, acredito que há um genuíno esforço de generosidade por trás”.

Consumo

Dados da OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, estimam que um trabalhador suíço médio tenha uma renda anual disponível para consumo de cerca de US$ 36 mil. Isso é mais que o valor dos outros países do grupo apelidado de “clube dos ricos”. A média de renda disponível para consumo entre os membros da OCDE é de US$29 mil ao ano.

A evidente prosperidade suíça, entretanto, não chega a ofuscar os olhos de algumas famílias em situação econômica favorável. Moradora do Bruderholz, Catia Gehrig, mãe de duas meninas de 6 e 9 anos é um exemplo. Ela promove ativamente a cultura de consumo responsável dentro do lar. A filha maior utiliza equipamentos esportivos de segunda-mão nas exclusivas aulas de hipismo e patinação no gelo. Já a menor foi incentivada a recolher, organizar e vender online os brinquedos pelos quais perdeu interesse.

“Elas aprenderam a se virar. Recolhem todas as peças, colocam para vender e com o dinheiro compram outras coisas”, conta com orgulho a mãe, confiante de estar presenteando as filhas com algo muito mais valioso do que meros brinquedos novos.  

A generosidade suíça

Daniele Toupane da organização de auxílio Suíça Solidária afirma que há no país uma “cultura de contra-consumo” e que a Suíça está pronta para questionar o consumismo, porquê vive uma realidade próspera e possui uma tradição de generosidade.

“A Suíça tem grande tradição humanitária, que é passada de geração em geração”, diz. “Essa solidariedade tem origem na nossa gratidão por estarmos bem, por vivermos com segurança, liberdade e qualidade de vida e por isso queremos ajudar os outros que não estão tão bem, para que eles fiquem melhor”, acredita. “A melhor forma de ajudar é fazer uma doação”, conclui.

Na média, uma família suíça doa por mês CHF179 (R$590) para caridade.

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