Geleiras suíças entregam segredos do passado
Arcos de madeira neolíticos, pontas de flechas de quartzo e um livro de preces: à medida que os glaciares alpinos derretem e recuam, tesouros arqueológicos bem preservados e restos humanos vêm à tona. Uma nova exposição apresenta algumas das raras descobertas.
“Se você está em uma geleira, qualquer pedaço de madeira que você encontrar provavelmente foi trazido para lá por um humano. Se a madeira é diferente e parece ter sido trabalhada pelo homem, você deve entrar em contato com serviço arqueológico”, declara Pierre-Yves Nicod.
O arqueólogo e curador do Museu de História do Valais, na região sudoeste da Suíça, inaugurou recentemente a exposição “Mémoires de glace: vestiges en péril”Link externo (Memórias de gelo: vestígios em perigo) na cidade de Sion, capital do estado. Uma pequena, mas importante coleção de objetos que datam de 6.000 a.C. até o século passado e que foram congelados no tempo nas geleiras alpinas. A maioria foi encontrada por caminhantes ou esquiadores em alta altitude e depois verificados por arqueólogos usando técnicas de datação por carbono.
Entre os mais recentes vestígios estão as pesadas botas pretas que pertenciam a Marcelin Dumoulin e sua esposa Francine. O casal de Savièse, acima de Sion, desapareceu em 15 de agosto de 1942 por causa do mau tempo enquanto cuidavam de seu gado em um pasto alpino. Eles deixaram para trás sete crianças pequenas.
Setenta e cinco anos depois, um funcionário de um teleférico da região encontrou os restos mortais do casal no gelo, bem como mochila, relógio, um livro de preces e uma garrafa na superfície do glaciar TsanfleuronLink externo, acima do vilarejo de Les Diablerets. Desde 1960, a camada de gelo recuou cerca de meio quilômetro e encolheu consideravelmente. Em 22 de julho de 2017, um funeral foi realizado para o casal Dumoulin, com a participação de dois de seus filhos, netos e bisnetos.
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Corpos mumificados encontrados em geleira suíça
Não é raro que pessoas desapareçam devido ao mau tempo em geleiras perigosas. Quantas permanecem presas no gelo espesso? Ninguém sabe. Desde 1926, cerca de 300 pessoas desapareceram, e estão oficialmente desaparecidas, apenas no Valais, o cantão suíço que possui alguns dos picos mais altos dos Alpes e é altamente glaciar.
Mas à medida que as geleiras suíças afinam e recuam, corpos mumificados pelo frio e objetos arqueológicos raros presos no gelo estão surgindo com frequência. E o fenômeno pode acelerar. Cientistas alertam que quase todas as camadas de gelo nos Alpes suíços podem desaparecer até 2090 devido às mudanças climáticas.
Somente neste mês, a polícia do Valais confirmou que os ossos e equipamento de escalada encontrados em setembro na base do Matterhorn pertenciam a um montanhista japonês que havia desaparecido há quatro anos. Segundo a polícia, os ossos apareceram com o derretimento da neve espessa e do gelo.
Em 2012, os esqueletos e equipamentos de Johann, Cletus e Fidelis Ebener apareceram na geleira Aletsch, 86 anos depois de terem desaparecido. Uma bota de caminhada que pertencia a um dos irmãos Ebener fica em uma vitrine do museu, ao lado de um mocassim neolítico que também foi expelido por uma geleira.
A exposição também apresenta os pertences pessoais do “mercenário do desfiladeiro de Théodule”, um homem não identificado que teria caído em uma fenda acima de Zermatt no século XVII com sua espada, pistola, punhais e bolsas. Seus ossos, roupas, dinheiro e outros itens pessoais foram recuperados por um casal de Zermatt em 1984 na geleira. Pesquisa detalhada descobriu mais tarde que o “mercenário” era provavelmente um comerciante rico viajando da Itália para a Suíça, e possivelmente para a Alemanha, através do movimentado desfiladeiro.
“O que é interessante não é sua espada ou punhal, mas sua calçadeira”, disse Nicod. “É uma das calçadeiras de ferro mais antigas, perfeitamente datada. E coisas como canivetes, facas pessoais e amuletos nos dão uma imagem muito mais íntima dele”.
“Acho que é a natureza dos objetos”, diz ele sobre o fascínio do público por tais descobertas, bem como os aspectos macabros e aventureiros. “O que essas coisas fazem lá em cima, a 3.000 metros acima do nível do mar?”
Ele compara cada objeto bem preservado como uma “foto” do passado, ajudando nossa compreensão dos movimentos humanos através dos numerosos caminhos de montanha ao longo dos séculos, bem como sobre roupas, equipamentos, técnicas de caça e exploração de recursos naturais.
A exposição também apresenta uma coleção de objetos raros – um fragmento de sapato, um arco e flechas, uma caixa de flechas e capas para as pernas – que pertenceu a um caçador do período neolítico (2.800 a.C.). Seus pertences – mas nenhum osso – foram descobertos por um caminhante suíço, alpinistas alemães e arqueólogos de Berna – no desfiladeiro de Schnidejoch, ao norte de Sion, entre 2003 e 2004.
Os alpinistas que encontraram o arco o levaram para a Alemanha, e só decidiram entrar em contato com o serviço arqueológico do Valais para entregá-lo três anos depois.
Nicod conta uma história semelhante sobre um sapato de neve de 5.800 anos, feito de madeira e tiras de salgueiro, descoberto na província de Bolzano, no nordeste da Itália.
“Foi recolhido por um engenheiro italiano que trabalhava na fronteira entre a Áustria e a Itália. Ele levou para seu escritório, onde passou 7 a 8 anos em um armário antes de decidir mostrá-lo aos arqueólogos”, explica. “Muitas descobertas interessantes surgem apenas alguns anos depois. É uma pena, pois elas podem ser facilmente danificadas.”
Uma vez expostos ao ar, os objetos extremamente frágeis degradam-se rapidamente. Portanto, é importante que os especialistas possam coletá-los e armazená-los em um ambiente frio controlado.
A arqueologia glacial continua sendo uma disciplina relativamente nova, apesar de ter ganho um enorme impulso em 1991 com a descoberta de Ötzi, o homem mumificado de 5.300 anos que foi encontrado em uma geleira nos Alpes, entre a Áustria e a Itália.
No entanto, desenvolveu-se consideravelmente nos últimos 30 anos na Suíça, tornando-se mais profissional e especializada. O cantão de Berna, por exemplo, desenvolveu um centro de especialização e todo verão uma equipe de arqueólogos passa semanas coletando material e preservando objetos.
O cantão do Valais tem planos semelhantes; criou um grupo de trabalho interdisciplinar para ver como desenvolver seu trabalho de arqueologia glacial. Uma ideia é um aplicativo de smartphone para que o público possa enviar informações sobre objetos interessantes que eles encontram quando estão em uma geleira.
“O problema é que precisamos fazê-lo rapidamente, já que o Valais tem 30% de todo o gelo alpino e as geleiras estão derretendo rapidamente”, adverte Nicod.
A exposição “Aus dem Eis – Mémoire de glace” acontece entre os dias 6 de outubro de 2018 e 3 de março de 2019 no espaço Le Pénitencier, Centre d’expositions des Musées cantonaux, Rue des Châteaux 24, 1950 Sion.
Adaptação: Fernando Hirschy
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