Com a Copa do Mundo futebol avança no controle antidoping
Desde 03 de março, todos os jogadores certos de jogar na Copa do Mundo no Brasil, podem ser controlados a qualquer hora, em testes de urina e sangue. As amostras serão analisadas pelo Laboratório Suíço de Análise do Doping (LAD), acreditado pela Fifa e em acordo com a Agência Mundial Antidoping (WADA). Qual o procedimento e o que será testado? Explicações com o diretor do LAD, Martial Saugy.
O Laboratório Suíço de Análise do Doping, único na Suíça (LAD), fica em um edifício austero na cidadezinha de Epalinges, perto de Lausanne. Ele é associado ao Hospital Universitário CHUV, também em Lausanne. O único laboratório brasileiro que era habilitado para fazer exames antidoping – O Ladatec, no rio de Janeiro – teve sua credencial retirada em agosto passado pela Agência Mundial Antidoping (WADA, sigla em inglês). Daí a escolha da Fifa em fazer todas as análises de doping da Copa 2014 no laboratório suíço.
A reportagem de swissinfo.ch é recebida na biblioteca do laboratório, uma sala com cadeiras empilhadas em um canto, onde também ocorrem as reuniões do laboratório. Seu diretor, o bioquímico Martial Saugy, professor na Faculdade de Biologia e Medicina da Universidade de Lausanne é taxativo na entrevista a seguir: “Todos os 736 jogadores que participarão da primeira fase da Copa do Mundo no Brasil serão testados, a maioria antes do início da competição” e, pela primeira vez no futebol, serão estabelecidos passaportes biológicos dos jogadores.
swissinfo.ch : Qual é a definição científica do doping?
Martial Saugy: É muito difícil. É a utilização de produtos ou métodos proibidos. A lista de produtos e métodos proibidos e considerados dopantes, definida pela Agência Mundial Antidoping e retomada pela Fifa para a Copa do Mundo, é elaborada por consenso por especialistas, com base em três critérios: 1) produtos que melhoram a performance do atleta e existe conhecimentos e literatura científica a esse respeito; 2) sabe-se que esses produtos e métodos podem ter efeitos negativos sobre a saúde dos atletas e jogadores; 3) A utilização desses produtos e métodos são contrários ao espírito do esporte. Pelo menos dois desses três critérios devem observados para incluir um novo produto nessa lista.
swissinfo.ch: Por que essa lista é atualizada todo ano?
M.S.: Nessa lista há muitos produtos que são medicamentos. A EPO é um medicamento extraordinário para as pessoas que não fabricam o número necessário de glóbulos vermelhos porque têm problemas renais. A indústria farmacêutica lança novos medicamentos todo ano e cada vez mais sofisticados, cujo uso por um esportista pode ter um efeito dopante. Por isso essa lista é atualizada todo ano. Eu fiz parte dessa equipe de especialistas durante cinco a seis anos (farmacêuticos, biólogos, médicos do esporte etc.) que acompanha a literatura médica, registros de patentes e outros critérios para introduzir um novo produto na lista.
swissinfo.ch: O que avança mais rápido, o doping ou o combate ao doping?
M.S.: Existe uma corrida e sempre foi assim. Por definição, o doping vai mais rápido do que a luta contra ele. Isso ocorre porque a luta contra ele leva o doping mais longe. Essa distância às vezes é muito pequena e às vezes muito grande. Então, no combate, estamos sempre atrás.
swissinfo.ch: Por que os atletas se dopam?
M.S.: Porque o esportista quer ganhar (risos). Mas é uma questão difícil. Eu acho que é uma questão individual e, portanto, não há uma resposta única. Num esporte individual, o atleta diz que quer ganhar, estar na primeira página dos jornais. Pode ser o jornal de um vilarejo, de uma região ser o melhor no Jogos Olímpicos. Ou seja, tem a imagem que o esportista quer mostrar. A glória do esportista. Seja amador ou profissional. Para mim, a única diferença é que no profissional, o dinheiro passa a ser importante a partir de um certo nível de profissionalismo. Quando o doping é de alto nível, a responsabilidade é dividida porque um atleta sozinho não pode fazê-lo. Por trás, há um médico ou uma equipe médica.
swissinfo.ch: Existem esportes mais propícios ao doping do que outros?
M.S.: Eu penso que sim. Há esportes em que a pura performance física é mais importante do que outros. Esportes em desempenho é medido como o atletismo e o ciclismo (este a mais longo prazo). O tênis é um grande ponto de interrogação. É um esporte técnico mas que exige um físico extraordinário. As mudanças de ranking no mais alto nível ocorrem geralmente pela melhora da condição física. Então, atualmente, os esportes individuais são mais propícios ao doping do que os esportes de equipe como o futebol. Eu acho muito difícil hoje ter uma estrutura organizada para dopar uma equipe. A comunicação, todas as informações que podem circular fazem com seja muito difícil para uma equipe. Até porque os riscos são muito maiores para uma equipe do que para um esportista individual. Quer dizer que um jogador dentro de uma equipe pode se dopar.
swissinfo.ch: O LAD trabalha com a Fifa desde 1998. Tem pouco doping no futebol?
M.S.: Devo dizer que a Fifa leva a sério o problema do doping. As federações nacionais na Europa e organizações continentais como a UEFA (União Europeia de Futebol), fazem muitos controles. Pelo número, o futebol é onde há mais controle nas estatísticas da Agência Mundial Antidoping. Mas a Fifa realiza apenas Copas do Mundo de diferentes níveis. Ela tem menos competições para fazer os controles. Durante a Copa do Mundo há controle como nos Jogos Olímpicos. A Fifa está mudando um pouco sua estratégia para fazer controles longitudinais, ou seja, estabelecer um passaporte biológico e fazer controles fora das competições. A UEFA já faz isso. Federações nacionais como na Inglaterra, Portugal e outras fazem controles durante as competições e as agências nacionais antidoping controlam fora das competições. Os jogadores brasileiros que estão nas grandes equipes europeias sabem disso.
swissinfo.ch: Os casos são raros porque os controles eram menos severos ou menos evoluídos?
M.S.: Eu acho que há uma mudança na estratégia de controle atualmente no futebol. Certamente teria sido possível fazer melhor antes. Especialmente depois da Copa de 2010 na África do Sul existe a vontade da Fifa de mostrar às organizações continentais que é preciso fazer controles também fora das competições. Por outro lado, o futebol tem razão de dizer (mesmo se eram controles de urina ao final dos jogos), era arriscado para o jogador de tomar alguma coisa proibida. Falo da Europa Ocidental, que conheço melhor. Na América do Sul não tenho como avaliar a qualidade dos controles que se fazem lá
swissinfo.ch: o LAD, laboratório que o senhor dirige, fez as análises da Copa da Confederações em julho de 2013, Não houve um único caso de doping?
M.S.: Nenhum. Houve controles antes da competição. Devo dizer que são as melhores equipes do mundo, das Confederações. Os jogadores sabiam que iam participar de uma grande competição, com muita mídia, e que eram suscetíveis de serem controlados. Sabem que seria um escândalo enorme um controle positivo. Acho que tem uma tomada de consciência de que, em eventos desse porte, não se pode brincar com fogo. Não é bonito mas é a realidade: a ameaça de controle é dissuasiva.
swissinfo.ch: Na primeira fase da Copa do Mundo serão 736 jogadores (32 seleções com 23 jogadores cada uma). Todos serão controlados?
M.S.: Todos serão controlados antes da Copa, mais ou menos dois meses antes. Serão portanto, mais de 736 jogadores porque, em certos casos, os 23 jogadores ainda não estarão definidos. Alguns desses controles serão feitos na Europa, antes das seleções viajarem para o Brasil. Nesse caso a Fifa vai certamente trabalhar com os controladores da UEFA, que são todos médicos.
A Fifa também tem pessoal formado para coletar as amostras, que dependem da comissão médica da entidade. Eles vão fazer controles no Brasil e todo o material será enviado aqui, ao nosso laboratório, que fará todas as análises.
swissinfo.ch: Mas será preciso uma grande logística para isso?
M.S.: Isso já ocorreu outras vezes e para nós é a rotina. Se o laboratório do Rio de Janeiro (Ladatec) não tivesse perdido a credencial da Agência Mundial Antidoping, nós iríamos trabalhar com eles. Isso torna as coisas um pouquinho mais complicadas, mas é rotineiro. Há questões técnicas e políticas nessas discussões. Teria sido politicamente delicado enviar as amostras à Colômbia, Cuba ou México. Foi uma decisão da Fifa, com a qual trabalhamos já há bastante tempo, e que preferiu perder 12 horas de avião para enviar o material aqui.
swissinfo.ch: Quais as substâncias que terão mais atenção nos testes da Copa?
M.S.: Vamos procurar tudo, conforme a Fifa quer. Mas é claro que os esteroides são muito procurados, mesmo se são pouco utilizados no futebol. É o número um dos atletas que se dopam. Tem também os hormônios de crescimento, a EPO e os estimulantes como as anfetaminas. É importante detectar os produtos que sabemos que podem ter efeitos sobre todo o torneio, especialmente esteroides como a testosterona. É a substância permitiria, durante uma competição de quatro ou cinco semanas, de ter uma recuperação melhor. Então, procuramos tudo mas sabemos que certas categorias de produtos permitiriam manter a forma durante toda a Copa.
swissinfo.ch: Vamos supor que um jogador famoso seja pego no doping. Não pode haver pressão da Fifa, da seleção ou de um clube para não revelar o caso?
M.S.: Nós recebemos as amostras com números, não como nomes. Portanto, para nós, é totalmente anônimo. Essa é a regra e é muito estrita. Se temos um resultado positivo, ele não vai somente para a Fifa mas, ao mesmo tempo, para a Agência Mundial Antidoping. Se o resultado não for para a Agência, no Canadá, perdemos a credencial e poderemos fechar do dia para a noite. Essa é a regra de funcionamento para evitar toda forma de pressão sobre o laboratório. Por outro lado, nosso laboratório não pode garantir que tudo será negativo porque a Agência pode introduzir, a qualquer momento, amostras positivas para verificar se o laboratório trabalha bem. Portanto, há formas de controle para evitar colisões entre a Federação e o laboratório.
swissinfo.ch: Num caso de doping na Copa do Mundo quem é responsável: somente o atleta ou também o médico da seleção ou a federação nacional?
M.S.: A primeira responsabilidade é do jogador, que tem direito a uma segunda análise. Se tudo é confirmado, o jogador é desclassificado e depois sancionado pela Fifa. O jogador também é consultado pela Fifa e se ele indica que o produto vem do entorno ou foi injetado ou prescrito pelo médico, a Fifa e a Agência Mundial Antidoping podem sancionar o médico. Mas a regra é que a primeira sanção vai ao jogador – que pode recorrer ao Tribunal Arbitral do Esporte – e, se for comprovada a responsabilidade do médico, ele também será punido. Esse procedimento faz parte do Código Mundial Antidoping e é certo que a Fifa o aplicaria na Copa do Mundo.
swissinfo.ch: Pela primeira vez os dados dos jogadores serão usados para fazer o passaporte biológico deles. O futebol está atrasado em relação a outros esportes?
M.S.: Todos os jogadores, antes do começo da Copa, terão um controle de sangue e de urina. Vamos coletar todo o necessário para estabelecer os dados básicos dos jogadores. O passaporte biológico é mais amplo que uma verificar o número de glóbulos vermelhos ou hematócritos no sangue. Também existem informações biológicas na urina, para estabelecer uma espécie de impressão digital biológica de cada jogador. Cada pessoa tem uma biologia particular e o objetivo do passaporte biológico é de verificar se o jogador mantém sua biologia particular. Então, certas mudanças de parâmetro, que de repente sobem e que podem indicar uma eventual dopagem. Sabendo o que ocorre com produtos dopantes, é possível constatar anomalias. Não é sistematicamente doping, mas é preciso provar que é, evidentemente. Com o futebol, sistematicamente, será a primeira vez, mas estamos habituados a esse trabalho, com o ciclismo e o atletismo, esportes que têm muito mais problemas de doping do que no futebol.
Tem ainda um problema de dimensão. No ciclismo existem aproximadamente 800 profissionais. Para o futebol, só na Copa do Mundo haverá quase o mesmo número. Como o risco é menor, foi preciso refletir bem para dar uma resposta porque todo mundo diz que o futebol está atrasado no controle. Lembro ada que outros esportes como o tênis e o hóquei no gelo, por exemplo, que ainda não têm o passaporte biológico.
Resumindo, eu acho que a política antidoping no futebol é coerente, dado o grande número de praticamente e ao fraco risco de dopagem.
swissinfo.ch: no site do laboratório, está escrito que o combate futuro é o doping genético. Do que se trata?
M.S.: Sabe-se que certas doenças genéticas graves são combatidas pela terapia gênica, ou seja, introduzir genes para compensar certas deficiências do corpo. Essas tecnologias podem ser utilizadas para dopar. Por exemplo, introduzir um gene para o corpo fabricar mais EPO, mais glóbulos vermelhos e portanto, mais resistência. Fala-se muito e a Agência Mundial Antidoping já investiu milhões de dólares na pesquisa sobre o doping genético.
Devo dizer que não veio tão rápido como se pensava por várias razões. O doping “clássico”, que vem da biotecnologia como a EPO, os hormônios de crescimento e todos os novos medicamentos. Eles são mais fáceis de usar do que seria a terapia gênica. Esta dá medo. Os atletas que gostariam utilizar essa técnica devem questionar se ela não é irreversível, quais os efeitos secundários. A medicina mostra que a terapia gênica ainda não é distribuída. A medicina e a indústria farmacêutica trabalham muito ainda com a biotecnologia para sintetizar substâncias muito próximas das que temos no corpo ao invés de modificar o genoma do ser humano. Para mim, é algo que se leva a sério, mas que atualmente ainda não é utilizável.
swissinfo.ch: A indústria alimentar pesquisa muito o que chama de “alicamento”, um conceito da alimentação que cura. Isso não pode virar doping?
M.S.: Já estamos no limite do doping com o suplementos alimentares. Com os “alicamentos” são duas categorias que se aproximam cada vez mais. Como o doping é uma noção consensual. Toda melhora da performance não é proibida. O treinamento em altitude não é proibido. Um estágio em caixa hiperbárica não é proibido e, portanto, isso está no limite. Os “alicamentos” serão a mesma coisa: saber onde está a linha para coloca-lo de um lado ou de outro. Toda a história do doping é assim, de decidir onde está o limite. É por isso que, quando os governos e federações esportivas adotaram o Código Antidoping, foi incluído o critério do espírito esportivo. É muito subjetivo, mas tem esse aspecto consensual. A sociedade sempre foi assim, aceitando as coisas até um certo limite.
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