“A Suíça ainda não cumpriu completamente suas obrigações”
A Suíça é um dos países signatários da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e compromete-se, portanto, a integrá-los na sociedade. Um festival de música em Zurique mostra que a inclusão é possível.
O salão da Rote Fabrik (Fábrica Vermelha) está cheio. A atmosfera é fantástica. O público bate palmas, canta e aplaude. À primeira vista, este é um festival de música normal, extremamente bem-sucedido.
À segunda vista, torna-se claro que as pessoas com e sem deficiência mental estão cantando, celebrando e aplaudindo lado a lado, e umas com as outras, tanto na plateia como no palco. A cantora suíça Vera KaaLink externo canta, entre outras coisas, que a pessoa deve reservar dez minutos para si mesma.
As canções da banda “Tobis WeltLink externo” falam sobre a vida cotidiana em uma casa, sobre a paz e sossego no banheiro, sobre uma visita ao “Zahnarsch” (em tradução livre: dentista bundão) ou sobre as férias na estação de esqui de Saas Fee. Elas lembram que muitos gostariam de passar mais tempo sozinho ou com amigos, sem cuidadores irritantes, que aparecem nos momentos mais inoportunos.
O que é?
Inclusão significa que as pessoas com deficiência mental participam na vida social como membros iguais, e as que suas diferenças são percebidas como um enriquecimento para todos.
O fato de Vera Kaa e “Tobis Welt” estarem no palco, um após o outro, simboliza “inclusão”: pessoas com e sem deficiência participam na vida cultural, em pé de igualdade. Isso também é exigido pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com DeficiênciaLink externo, que a Suíça ratificou em 2014.
No entanto, o “Soundsyndrom! festival”, que acontece pela segunda vez em Zurique, tem sido até agora a exceção. A Suíça não está numa boa posição quando se trata da inclusão de pessoas com deficiência mental.
A Casa TobiasLink externo em Zurique é uma instituição antroposófica que administra prédios residenciais e um lar diurno de cuidados para adultos com deficiência mental. A fundação valoriza uma ampla gama de oportunidades artísticas e educacionais. Ela organizou o 2º festival Soundsyndrom! que aconteceu no dia 6 de outubro de 2019, na Rote Fabrik em Zurique.
“A Suíça ainda não cumpriu todas suas obrigações no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, diz Andrea Brill, da Casa Tobias, um lar residencial antroposófico para pessoas com deficiência mental (ver caixa), que organizou o evento.
Suíça tem de melhorar
De fato, o relatórioLink externo que avalia a implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na Suíça: “Uma Suíça inclusiva, na qual as pessoas com deficiência possam viver independentemente em todas as esferas da vida, ainda está muito distante, apesar de algumas bases jurídicas existentes.” Até mesmo o governo reconheceLink externo o potencial de melhoria da participação das pessoas com deficiência em todas as áreas da vida social.
Os críticos queixam-se, por exemplo, de que as crianças com deficiência são colocadas em escolas especiaisLink externo, ou de que os adultos com deficiência mental não têm o direito de votar ou participar de plebiscitos. Além disso, de acordo com as organizaçõesLink externo de deficientes, muitos adultos com deficiência intelectual não podem escolher o seu próprio local de trabalho e de residência.
De acordo com Andrea Brill, outros países já estão muito mais adiantados, especialmente no financiamento. Uma abordagem importante é quando o governo não apoia diretamente lares e instituições, mas sim disponibiliza diretamente uma quantia para pessoas com deficiência. O interessado pode então decidir por si mesmo se quer viver num lar ou dormitório, comunidades assistidas, sozinho ou com a ajuda de assistentes.
Estigma
Antes, algumas famílias na Suíça costumavam esconder os deficientes mentais por envergonhar-se. Ou, embora bem integrados, eles não eram respeitados e tratados como iguais, e “as pessoas riam deles como bobos”, diz Brill. Mais tarde, foram fundados lares onde as pessoas com deficiência eram cuidadas profissionalmente.
Embora a própria Andrea Brill trabalhe num desses lares para pessoas com deficiência mental – e descreva as casas como uma oferta importante – ela vê uma grande desvantagem: “As pessoas com deficiência mental são retiradas da vida quotidiana da sociedade e do público. Os abrigos criam uma espécie de sociedade paralela. Semelhante à das pessoas idosas ou moribundas.”
Por conseguinte, a maioria da sociedade está cada vez menos habituada a ver pessoas com deficiências mentais. Muitas pessoas “desaprendem” a lidar e se comunicar com pessoas com deficiência mental. Existe o perigo de, no final, apenas os seus “déficits” serem percebidos e de eles se tornarem um fardo para a sociedade, especialmente em termos financeiros.
Andrea Brill poderia imaginar que esconder pessoas com uma deficiência mental se tornaria, “num futuro não muito distante”, novamente um tema: “O diagnóstico precoce torna possível abortar bebês que possam apresentar deficiências. Posso muito bem imaginar que, mais cedo ou mais tarde, as companhias de seguros de saúde se recusem a pagar para uma criança deficiente se os pais não tiverem abortado. O futuro nos reserva questões éticas difíceis.”
Palco compartilhado
O objetivo da Casa Tobias é consolidar um festival de música que aconteça regularmente, no qual as pessoas, com e sem deficiência, partilhem não só a plateia, mas também o palco. As pessoas com deficiência mental devem ser “resgatadas das paredes protetoras – mas ao mesmo tempo restritivas – das instituições” e ter a oportunidade de apresentar os seus talentos.
No festival Soundsyndrom!, por exemplo, o público vivenciou em primeira mão – e de forma bem-humorada – com a “Tobis Welt” sobre a vida cotidiana dos moradores de um lar para deficientes, ou com a banda “HORA’BANDLink externo” sobre o papel das pessoas com deficiência em uma sociedade cada vez mais baseada em normas. Tais encontros promovem a empatia e previnem a discriminação.
“O festival é um exemplo de como deve ser sempre”, diz Brill. “Espero que se torne uma questão natural encontrar pessoas com deficiência mental em todos parte no nosso cotidiano.
Acordo internacional
O objetivo da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é proteger as liberdades e os direitos das pessoas com deficiência física ou mental.
A Suíça a ratificou em 2014. No entanto, não assinou o protocolo facultativo e por isso não existem ainda sanções para o não cumprimento. A Suíça, todavia, deve apresentar relatórios periódicos sobre a aplicação do acordo.
O primeiro relatórioLink externo (2016) afirma que novas leis trouxeram melhorias significativas para as pessoas com deficiência na Suíça. A acessibilidade aos edifícios e aos transportes públicos foi igualmente melhorada.
No entanto, do ponto de vista da InsiemeLink externo (Associação de Deficientes e Familiares) e de outras organizações, o relatório ignora problemas existentes. Ele estaria muito centrado nas leis e não aborda problemas práticos da aplicação. A Convenção e outras bases jurídicas foram também demasiado orientadas para as pessoas com deficiência física. As necessidades das pessoas com deficiência mental ou psicológica não foram suficientemente consideradas.
As associações de deficientes lançaram um plano de ação nacionalLink externo para promover a implementação integral da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na Suíça.
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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