Uma ligação mais forte que o passaporte
Muitos descendentes não têm a nacionalidade suíça. Porém não se importam: seus laços com o país dos antepassados são tão fortes como a vontade de descobrir e fazer reviver a Suíça. Em Nova Friburgo as famílias helvéticas festejam suas tradições e até guardam a terra dos vilarejos suíços em casa.
O que fazem três suíços quando estão entediados? Eles jogam cartas ou fundam um clube. Essa antiga piada diz tudo sobre o povo desse pequeno país alpino. Especialmente ao viver no exterior, os suíços costumam se juntar com outros concidadãos para celebrar a identidade comum. Juntos, em pequenas salas ou restaurantes, em New Orleans ou Tóquio, disputam partidas de “Jass”, o tradicional jogo de baralho; comem um prato de “rösti”, a batata ralada fritada na manteiga; ou discutem sobre política dos vilarejos de origem.
Reportagem produzida para o projeto #SWIontourLink externo, que enviou seis equipes a diferentes países no globo para encontrar representantes da chamada “Quinta Suíça”, os suíços do estrangeiro. Veja os vídeos, entrevistas e imagens na página swissinfo.ch no InstagramLink externo.
Mas quando as raízes suíças se perdem nos séculos? Em 1819, um grupo de 2.004 suíços originários do cantão de Friburgo, Berna e outras regiões da Suíça emigrou para o Brasil. Duzentos anos depois, a maioria dos descendentes não fala mais o francês ou o dialeto suíço-alemão. A maioria nem sequer visitou a Suíça. Porém a cidade que criaram, Nova Friburgo, foi reconhecida como a “Suíça brasileira” em 2017 através de um decreto do governo estadual do Rio de Janeiro. A razão: o esforço que esses descendentes fazem para relembrar seus laços e recriar a Suíça segundo suas aspirações e sonhos. Afinal, a Suíça é uma “WillensnationLink externo”, uma expressão do alemão que denomina um país que não tem um idioma ou religião comum, mas que se forma por uma vontade comum de se manter unido. A tradução é “nação de vontade”.
Punhado de terra que conta história
Pedro Sanglard segura com cuidado uma caixa de vidro repleta de terra escurecida. Esse friburguense de 59 anos preside a Associação da Família Sanglard, uma das famílias que emigraram ao Brasil duzentos anos atrás. “Essa terra vem de CornolLink externo, um vilarejo nas montanhas do cantão do Jura. Foi de lá que saiu o patriarca da nossa família, Mathieu Sanglard”, conta orgulhoso, antes de recolocar com cuidado o vidro na estante. Nela estão dispostos também quadros, fotos dos antepassados e outros objetos familiares. O acervo forma o pequeno museu privado, localizado nos aposentos de um antigo casarão colonial em Amparo, zona rural de Nova Friburgo, onde a família Sanglard já produziu café, a cultura que salvou os colonos suíços da pobreza alguns anos após chegar ao Brasil. O casarão também é sede da associação da família. “Somos a única a possuir sede própria”, diz.
Nos últimos dois séculos, a família Sanglard cresceu muito. “Hoje são mais de seis mil membros, espalhados em diferentes lugares do Rio de Janeiro e outros estados brasileiros como Espirito Santo, São Paulo, Paraná ou Minas Gerais”, conta Pedro, que na vida profissional é procurador do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ele próprio escreveu um livro para contar a saga da família, que já está na segunda ediçãoLink externo. Pedro também é responsável pelo site da Associação Mathieu SanglardLink externo. Anualmente a família se encontra em diversas ocasiões, sejam festas juninas ou encontros de família. Nelas muitas vezes são celebradas tradições não muito suíças como o jogo de malha. Porém muitas vezes os parentes suíços também estão presentes. “Temos uma forte relação com eles. Costumamos nos visitar várias vezes por ano”, explica Pedro, lembrando que o cantão de onde saiu a família também mantém a memória. “Há pouco recebemos na sede da associação David Eray, chefe de governo do Jura. O cantão irá organizar em 2020 uma grande festa para comemorar a migração dos suíços ao Brasil”, afirma.
Na própria Suíça sobraram poucos Sanglard. Na lista telefônica de Cornol há registros de apenas duas pessoas portando o mesmo nome. Na lista telefônica suíça são apenas 44. Ao ser questionada sobre os parentes no Brasil, Attale Sanglard, residente em Cornol, conta como sente-se ao saber que as tradições suíças são mantidas mais de dez mil quilômetros distante de casa. “A primeira vez que encontramos os Sanglard do Brasil foi durante a Expo.02 na Suíça. Eles se informaram na prefeitura do nosso vilarejo e depois vieram nos visitar. Hoje os consideramos como primos”, explica. A suíça conta que já esteve três vezes no Brasil e já recebeu o mesmo número de vezes os parentes brasileiros na Suíça. Impressionante para ela é o fato de ter tantas pessoas com o nome Sanglard no Brasil. “Imagine que o patriarca, quando saiu aqui de Cornol, estava acompanhado apenas pela mulher e quatro filhos. E eles levaram consigo a terra do vilarejo, pois sabiam que era uma viagem só de ida.”
Danças suíças via internet
Um cantinho suíço no pé da montanha, coberta de matas tropicais. No centro de Nova Friburgo, ao lado do teleférico, uma das suas principais atrações turísticas, encontra-se a Praça das ColôniasLink externo. O pavilhão abriga dez salas, onde estão representados os diferentes grupos de imigrantes que formaram essa cidade ao longo de sua história. Uma delas é inteiramente dedicada à Suíça, o que se justifica pelo fato de a cidade serrana ter sido a primeira colônia suíça do continente.
Geraldo Thurler abre com cuidado a porta de vidro da pequena sala. Esse aposentado preside a Colônia Suíça de Nova Friburgo e está muito orgulhoso do que apresenta aos visitantes. A Praça das Colônias foi reinaugurada em 2018, sete anos depois que uma enchente destruiu parte de suas estruturas. Na sala, que ele próprio ajudou a decorar, tem no fundo uma decoração que lembra um típico chalé alpino, com janelas e vasos de flores. Um grande poster pendurado na parede lateral exibe uma paisagem alpina, com montanhas cobertas de neve e um lago. Na mesinha à esquerda, diversos objetos estão expostos: livros com fotografias da Suíça, o brasão da região do Gruyère e estudos sobre a migração helvética como “Imigrantes”, do estudioso local Henrique Bon (ver entrevista).
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Unidos pela paixão da dança suíça
“Utilizamos esse espaço para encontros dos descendentes de suíços e também para contar um pouco sobre a imigração suíça à população de Nova Friburgo”, explica Geraldo. Aos 71 anos de idade, esse friburguense divide seu tempo com diversas atividades. Além de representar a colônia suíça, também faz parte do grupo de danças folclóricas SwissandoLink externo. Criado em 2010, o grupo reúne não apenas descendentes de suíços. “Sempre tive uma paixão pela dança suíça, pois na minha família houve alguns membros que foram criados por migrantes suíços”, conta Elson Santana, 53 anos. Metalúrgico de profissão e nascido em Nova Friburgo, ele nunca esteve na Suíça, mas nutre uma grande admiração. “Deve ser um país fora do normal. Não só pela paisagem, tão bonita, mas por ter um povo prestativo e que gosta tanto do trabalho”, diz, logo após o ensaio, realizado a noite em um canto da praça.
“Importante para mim é resgatar uma tradição trazida pela minha família há duzentos anos atrás, que eu nem conhecia antes”, explica Tiago Cardinaux, descendente de suíços. Questionado sobre o aprendizado das danças, confessa que a internet é o grande professor do grupo. “Pesquisamos no YouTubeLink externo para descobrir novas danças praticadas na Suíça e por que se praticam elas”, conta. Ao seu lado, Geraldo mostra um bordado na saia de uma das dançarinas do grupo. “Ele foi dado de presente por suíços que estiveram em Nova Friburgo no último encontro”, afirma. O estilo das roupas folclóricas é inspirado em livros históricos e depois preparado por costureiras locais. “O importante é podermos fazer bonito em ocasiões como o Festival do ChocolateLink externo de Nova Friburgo, onde iremos em breve nos apresentar.”
Eram pobres e ficaram ricos
Vinte quilômetros distante da Praça das Colônias, encontra-se a Casa Suíça, um espaço dedicado a lembrar a história da colonização suíça tem um museu, queijaria-modelo, chocolateria, cervejaria e até um memorial com uma estátua do Guilherme Tell, herói nacional suíço. Com 3,09 metros de altura, ela seria apenas um metro menor do que a estátua originalLink externo localizada em uma praça de Altdorf, a capital do cantão de Uri, na Suíça.
Geraldo Thurler conversa com um grupo de turistas originário do cantão de Fribourg. Ele conta a história da sua família, que originalmente saiu do vilarejo de Bellegarde, no desfiladeiro do JaunLink externo, próximo à fronteira entre o cantão de Berna e Fribourg. “Eram agricultores que tiveram de sair da Suíça devido às dificuldades econômicas. Hoje somos mais de três mil descendentes. Criamos empresas em Nova Friburgo na área de engenharia civil e mecânica”, diz, sem escolher uma ponta de orgulho. Os turistas explicam que não conheciam a história da migração em 1819 e confessam que vieram conhecer o centro depois que a guia contou que se tratava de um centro suíço localizado nas proximidades do Rio de Janeiro. “Impressionante para mim foi fazer o percurso de carro subindo as montanhas e pensando como os colonos suíços teriam conseguido chegar em Nova Friburgo”, relata Jean Egli, um dos turistas.
No bairro Vale dos Pinheiros, em Nova Friburgo, uma casa chama atenção. A fachada é pintada de branco e o teto, janelas e varandas de vermelho, as cores da bandeira suíça. No alto, um brasão familiar indica o proprietário com um longo nome, Alberto Lima Abib Wermelinger Monnerat. Nascido em 3 de julho de 1945, o friburguense tem nas suas origens várias famílias de colonos suíços imigrados em 1819. “Eu descendo das famílias Wermelinger-Egli (este último nome, da matriarca, ambos de Willisau-LU), Monnerat-Koller (idem, do Jura), e também descendo das famílias Borer-Wehrly (de Grindel, Solothurn), e Stutz-Gueber (de Albersville-LU)”, conta.
Economista de formação, depois que se aposentou do Banco Central, Alberto retornou à Nova Friburgo e começou a pesquisar as origens suíças. Desde então já escreveu quatro livros dedicados ao tema: “A família Wermelinger – uma aventura em dois continentes”; “…e os Suíços chegaram”, um livro de histórias em quadrinhos publicados também em francês e alemão como material escolar do cantão de Friburgo; “Pierre-Nicolas Chenaux : o herói da Gruyère e sua marca no Brasil” e “Têra novala – Terra nova – Terre nouvelle – Neues Land – Nüüs Lann”, também em cinco idiomas, incluindo dois dialetos suíços, o ‘patois fribourgeois’ e o ‘senslertüütsch’.
Hoje trabalha na publicação do quinto livro – “Legado Suíço” – que reúne suas publicações na página do FacebookLink externo. “Dessa vez não quis falar sobre a emigração suíça, pois é um assunto já muito explorado. O livro reúne meus artigos online sobre a cultura, geografia e história da Suíças. Na verdade, tudo o que é ligado direta- ou indiretamente à Suíça”, diz. São histórias variadas como suas experiências com o carnaval suíço. “Uma vez participei do carnaval do vilarejo de Kriens, muito famoso, onde as pessoas utilizam de máscaras de madeira denominadas Muur ou Hübeli. Não há regra específica para a confecção das máscaras, mas elas tendem a indicar o estilo próprio de cada escultor, na sua forma de exprimir a tradição. Em geral, exibem faces caricatas, mostrando sorrisos alegres e maliciosos, talvez para expressar os prazeres e devaneios carnavalescos”, conta no site.
E não apenas na fachada da casa, Alberto homenageia suas origens. Ela própria é um museu de lembranças. Em uma das paredes, ele pendurou o brasão da família ao lado de um quadro de vidro, com uma espada dentro e uma faixa com as cores do Vaticano. “Um presente do meu primo, que foi da Guarda do Vaticano”, conta. Outra parede é tomada por fotos antigas. “São membros da família Wermelinger, tanto na Suíça como no Brasil, ao longo dos últimos séculos”. Centenas de objetos decoram outros aposentos, sejam quadros históricos, souvenirs, medalhas,
Sua relação com a Suíça é intensa, não apenas através das pesquisas. Quase todos os anos viaja ao país para visitar amigos e parentes. Questionado sobre o que a Suíça representa para si, Alberto não titubeia. “Eu me sinto como se estivesse em casa. Eu nem estranho por estar no exterior. Acho que herdei muito dessa índole dos suíços, de querer as coisas bem organizadas e cumprir regulamentos. A falta dessas coisas no Brasil me incomoda muito. Por isso me sinto tão bem na Suíça”.
Um olhar suíço sobre as eleições federais em seis países!
Antes das eleições federais na Suíça, previstas para ocorrer em 20 de outubro de 2019, swissinfo.ch encontrou suíços do estrangeiro em seis diferentes países.
O objetivo era saber o que pensam os membros da chamada “Quinta Suíça”, que corresponde a 11% da população do país ou 760.200 pessoas.
Os jornalistas visitaram associações e clubes suíços na Alemanha, França, Itália, Brasil, Argentina e Estados Unidos, onde organizaram uma mesa-redonda para discutir temas de política e sociedade.
Veja as etapas da viagem através hashtags #SWIontour e #WeAreSwissAbroad nas redes sociais InstagramLink externo, FacebookLink externo e TwitterLink externo.
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