Como um programa suíço ensina privacidade online para crianças
Para as autoridades suíças de proteção de dados, crianças a partir dos quatro anos de idade devem ser ensinadas sobre segurança e privacidade de dados, antes mesmo de começarem a usar a internet.
Em uma iniciativa que pode ser uma novidade mundial, o cantão de Zurique lançou recentemente um conjunto de materiais didáticos sobre segurança e privacidade de dados para jardins de infância e para alunos iniciando a escola primária. O projeto quer ensinar às crianças a distinguir entre os segredos que elas podem compartilhar e os que devem guardar para si. O objetivo é permití-las compreender melhor o direito que têm à privacidade.
Os criadores do programa de ensinoLink externo disseram que uma iniciativa sobre privacidade com as crianças já era necessária há muito tempo e que deveria ir muito além do que já se fez. Para eles, este é um primeiro passo na defesa da democracia contra as ameaças do monitoramento invasivo e da desinformação.
Os educadores precisam simplificar estas questões altamente complexas em temas accessíveis para crianças pequenas. “Temos que pensar sobre que tipo de segredos as crianças podem ter nesta idade”, disse Jürg FraefelLink externo, diretor do Centro de Aprendizagem Digital da Escola Superior de Educação de Zurique (PHZHLink externo). “Talvez alguém esteja apaixonado, ou alguém esteja sendo maltratado em casa.”
Ele liderou a equipe de 16 pessoas da PHZH e da Secretaria de Proteção de Dados do Cantão de ZuriqueLink externo que participou do projeto. Ilustradores, designers, engenheiros de áudio e roteiristas, entre outros profissionais, juntaram-se para desenvolver este material de ensino de segurança e privacidade de dados. A chave era ensinar aos jovens o significado de privacidade e despertar seu interesse pelo assunto.
“Os segredos são permitidos”
O programa resultante se chama “Os segredos são permitidos” e é dirigido a crianças de quatro a nove anos de idade. Esta faixa etária inclui crianças que vão desde o jardim de infância, que geralmente vai dos 4 aos 6 anos de idade no cantãoLink externo, até a metade escola primária. Por segredos refere-se aqui aos dados que são recolhidos constantemente por smartphones e outros dispositivos comuns na era da Internet.
“Crianças com menos de doze anos de idade já visitam portais como o Snapchat e Instagram, apesar das regras oficiais não permitirem”, disse Fraefel. Porém, mesmo que as crianças não tenham ainda acesso à internet, elas estão expostas ao perigo de ter seus “segredos” revelados nesse ambiente, diz ele.
Antes que a internet se torne parte da sua rotina, os educadores devem ajudá-las a estabelecer os hábitos corretos de uso da internet, argumenta Fraefel.
Problema global
A necessidade de uma educação em privacidade digital é global. De acordo com a pesquisaLink externo da Agência das Nações Unidas para a Infância, UNICEF, um terço dos usuários globais da internet são crianças, e a proporção é ainda maior no Hemisfério Sul.
As vantagens políticas e comerciais levaram a indústria de coleta de dados (data mining) a recolher dados pessoais relacionados a todos os aspectos da vida, online como offline, e além-fronteiras. Anunciantes, desenvolvedores de produtos e equipes de vendas também se tornaram usuários comerciais desses dados. A privacidade pessoal está se tornando um luxo de primeiro mundo.
Em Taiwan, as preocupações com a segurança digital têm aumentado significativamente nos últimos anos. Segundo uma pesquisa realizada pelo Centro de Informação de Rede de Taiwan, 98% dos usuários da Internet declararam estar preocupados com os riscos na rede.
Os autores do relatório alertaram que os usuários confiam demais nos serviços da Internet e inadvertidamente compartilham muitos de seus dados pessoais. Nessa pesquisa, cerca de 72% dos entrevistados se mostraram preocupados com a questão da privacidade.
Ainda não existe uma iniciativa semelhante de privacidade online para crianças em Taiwan.
“Maus segredos”
Os especialistas suíços dizem que não é fácil desenvolver um curso de 10 a 20 horas com material didático para crianças que ainda não participam ativamente das mídias sociais. Por isso, os organizadores utilizam exemplos da vida real fora das mídias sociais para apresentar seu conteúdo.
Primeiramente, as crianças pequenas precisam compreender o que significa realmente privacidade. O material tenta mostrar-lhes que algumas coisas, como uma foto constrangedora, são segredos “maus”.
Considere, por exemplo, este cenário. Você observa enquanto seus colegas andam alegremente de bicicleta, mas você mesmo ainda não sabe andar de bicicleta. Você confessou para seus colegas mais confiáveis que tem vergonha de ainda não saber andar de bicicleta. Você pode esperar que eles guardem esse segredo para si mesmos?
Mas existem exceções aos segredos. Os educadores dizem às crianças que elas devem compartilhar segredos que afetam a segurança dos outros. Por exemplo, se um aluno tem vergonha de admitir que não sabe andar de bicicleta, um professor deve ser notificado.
Compartilhando segredos
No passo seguinte, as crianças são ensinadas a compreender que as pessoas têm o direito de escolher se querem ou não partilhar seus segredos. Elas são ensinadas que não apenas elas têm o direito de guardar segredos, mas que outras pessoas também o têm.
Em uma ilustração, um personagem de desenho animado aponta a câmera para outras crianças. Os educadores aqui as fotos como uma analogia para os dados. Será que deveríamos estar fotografando outros a torto e a direito? Podemos publicar e compartilhar imagens de outras pessoas?
Em outro cenário, uma criança brinca depois da aula num balanço enquanto seus colegas querem tirar fotos. De repente, a criança perde o equilíbrio e cai acidentalmente. Os colegas de turma fotografaram o momento embaraçoso. Eles devem apagar esta foto?
Também é mostrada às crianças a imensidão do que pode ser considerado informação privada. Os “segredos” em suas vidas vão desde as cores favoritas até endereços e números de telefone, passando por medos e desejos íntimos. Estes podem ser compartilhados com outros? Por que deveriam compartilhá-los? Por que não?
“Os seus dados pessoais são uma espécie de segredo. E cada vez que você compartilha algo, você confia em alguém para lidar com esses dados”, disse David Gavin, um pesquisador da PHZH.
A internet
Depois destas conversas, os professores apresentam a Internet para as crianças. Eles mostram três ilustrações: uma sala, um parque infantil e a Internet, representando respectivamente o espaço privado, o semiaberto e público.
Nesta fase, muitas das crianças já deviam ser capazes de ter uma noção do tipo de segredos ou dados que podem ser colocados online.
A duração do curso é definida entre 10 a 20 horas, o que proporciona flexibilidade aos alunos em várias regiões e ambientes digitais, e dá aos professores tempo suficiente para conduzir as discussões.
Este conjunto de materiais didáticos foi divulgado em janeiro passado após um ano de pesquisa e desenvolvimento e 25 ensaios em sala de aula. No outono de 2019, ele foi integrado em parte do curso de formação para professores em Zurique, tornando-se gradualmente parte do currículo para crianças naquele cantão suíço (na Suíça, os cantões são responsáveis pelas questões educacionais).
“Os segredos são permitidos” é apenas a primeira parte do projeto de currículo em desenvolvimento. A segunda e terceira partes se concentrarão no uso positivo da internet e no desenvolvimento da tecnologia. Estes módulos permitirão aos estudantes dar prioridade à segurança, mantendo a mente aberta para novas tecnologias.
Projeto premiado
“Segredos são permitidos” ganhou o Prêmio Global de Privacidade e Proteção de DadosLink externo este ano. O júri argumentou que a concepção do material didático não se concentra no estabelecimento de diretrizes ou normas de comportamento para os alunos, mas os ajuda a cultivar uma atitude correta.
Para Bruno Baeriswyl, o principal responsável pela proteção de dados no Cantão de Zurique, o livro didático para crianças pequenas é seu último trabalho antes da aposentadoria.
Segundo ele, o livro lança luz sobre os direitos de usuário das crianças, que constumam ser esquecidos em todo o mundo. Mas ele também tem uma mensagem para os futuros adultos: “eles terão que se levantar e defender sua privacidade, pois o que está em jogo é nada menos que a democracia”, diz.
Ele começou a defender a importância dos dados com uma pequena equipe de duas pessoas na década de 1990. Desde então, a sua equipe tornou-se a maior dentre os 26 cantões da Suíça. Um dos principais defensores de uma melhor privacidade online, ele argumenta que os cidadãos devem recuperar o controle sobre seus dados e quebrar o monopólio gradual de dados das empresas de tecnologia.
Necessidade de ação
A urgência decorre da rápida expansão das aplicações digitais, disse ele. A chamada Internet das CoisasLink externo está penetrando cada vez mais em cada aspecto da vida, e em cada nível etário, permitindo uma conveniência e interconexão sem precedentes. Mas ela também fornece uma grande quantidade de pontos de dados sobre nós para corporações que, em grande parte, não estão sujeitas à regulamentação.
Nas escolas, esses problemas são onipresentes: mais câmeras de vigilância são instaladas no campus, e mais professores exigem que os alunos criem contas na rede.
No sistema político suíço, muitos veem a democracia direta do país como uma possível resposta à invasão de privacidade. Eles veem o cidadão como tendo o poder de monitorar as políticas governamentais e de assumir o papel de guardião na salvaguarda de seus próprios direitos. Eles confiam que esse controle democrático pode garantir limites ao monitoramento e à vigilância de dados.
Mas e se a coleta em massa de dados expuser esses debates cívicos à manipulação e ao abuso?
“Não é fácil para as pessoas classificar a informação que obtêm nestas plataformas sociais porque não é transparente quem obtém esta informação e por que”, disse Bruno Baeriswyl, o alto funcionário responsável pela proteção de dados no Cantão de Zurique.
“Nós perdemos o controle. Já não podemos decidir quando os nossos dados são publicados e onde são publicados, o que significa que perdemos a nossa autodeterminação”.
Perspectivas de Taiwan
Em setembro, dois jornalistas de Taiwan se juntaram à equipe da swissinfo.ch por uma semana para fazer reportagens sobre a Suíça. Eles tiveram liberdade para relatar o que lhes parecia relevante para seus leitores em Taiwan. Esta reportagem foi realizada por Jason Liu, redator do jornal The ReporterLink externo.
Uma versão do artigoLink externo também foi publicado no jornal em chinês.
Adaptação: DvSperling
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