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Esquiando em um país totalitário

Esquiadores iniciantes na frente de um cartaz na estação de esqui de Masik Ryong. Patitucci Photo

Opressiva, irritadiça e nuclear: a Coreia do Norte é o último lugar do mundo onde as pessoas gostariam de esquiar. Todavia, uma visita à primeira e mais recente estação de esqui de luxo junta antigos adversários por alguns poucos dias de normalidade e diversão. swissinfo.ch participou da viagem.

No momento em que o nosso ônibus saiu de Pyongyang foi como se a ansiedade acumulada tivesse evaporado. A estranha realidade de cinco noites na Coreia do Norte passava a dar lugar, a cada milha percorrida, a uma estranha familiaridade. Estávamos partindo para Masik Ryong, a estação de esqui mais exótica do planeta.

Eu inclinei minha cabeça na janela e observei como arranha-céus da capital recuavam por trás da cordilheira de Masik. Figuras solitárias caminhavam penosamente através dos campos polvilhados de neve com pomares esqueléticos, onde irão brotar peras na primavera. Um soldado pedalava através da estrada vazia, de concreto, em uma bicicleta de uma marcha só. Seu rifle de assalto, bem untado de óleo, balançava na cesta de vime instalada frente ao guidão dela.

Era difícil imaginar que haveria algo de verdadeiramente grandioso para escrever sobre a prática de esqui na Coreia do Norte, mas quatro de nós aceitaram participar do pacote adicional no extenso programa de passeio em Pyongyang e nos seus arredores.

Há poucos dias, em meados de fevereiro, o país celebrou o que teria sido o 73° aniversário doe Kim Jong-il, o antigo Líder Supremo da República Popular Democrática da Coreia do Norte, com grandes espetáculos de danças, exposições de flores e shows de natação sincronizada. Foi um momento verdadeiramente fascinante, o de visitar o corpo embalsamado do “Querido Líder” em um mausoléu mal iluminado e aprender sobre os crimes cometidos pelos agressores imperialistas dos Estados Unidos em um museu de um modo um tanto ou quanto excêntrico, mas bonito, e de engasgar em uma sopa picante de carne de cachorro. Mas a realidade desse lugar começou a mexer comigo também.

Os crimes cometidos pelo regime comunista norte-coreano são comparáveis aos dos nazistas, ao apartheid sul-africano e ao Khmer Vermelho e devem ser interrompidos, afirmou em Genebra o presidente de uma comissão de inquérito da ONU.

“Para lutar contra os flagelos do nazismo, do apartheid, do Khmer Vermelho e de outras afrontas foi necessária a coragem das grandes nações e de seres humanos comuns”, declarou Michael Kirby no Conselho dos Direitos Humanos da ONU.

Em um relatório publicado em 17 de fevereiro, um grupo de juristas fez, sob mandato da ONU, um balanço argumentado contra o regime norte-coreano, acusado de cometer crimes contra a humanidade em grande escala.

Os três especialistas da comissão de inquérito não conseguiram entrar na Coreia do Norte, apesar dos pedidos, e interrogaram fugitivos e testemunhas em vários países.

O relatório afirma que o número de campos e de prisioneiros diminuíram em consequência das mortes e de algumas libertações, mas destaca que “entre 80.000 e 120.000 prisioneiros políticos estão atualmente detidos em quatro grandes centros”.

O documento calcula em “mais de 200.000, incluindo crianças”, os desaparecidos, entre os quais também estão sul-coreanos que viajaram ao Norte, pessoas de origem coreana procedentes do Japão, chineses e japoneses.

A comissão de inquérito da ONU sobre as violações dos direitos humanos na Coreia do Norte foi criada pelo Conselho de Direitos Humanos em março de 2013.

A Coreia do Norte foi contrária à criação da comissão.

Sem surpresa, o representante norte-coreano na ONU em Genebra, Se Pyong-so, rebateu o relatório, que chamou de “litigioso”, e acusou o governo dos “Estados Unidos e outras forças hostis” de terem “inventado” a comissão para “difamar a imagem digna” do país. (Fonte: AFP)

Um turista australiano de outro grupo foi detido há pouco por distribuir alegadamente material religioso em um país com tolerância zero para os cristãos. Um membro do nosso próprio grupo foi acusado, incorretamente, de ter manipulado o visto para poder permanecer mais tempo no país. Eu vim com um visto de turista, que os funcionários norte-coreanos me asseguraram estar em ordem, já que sou muito mais um jornalista especializado em turismo do que um investigador. De fato, tinha de controlar a minha língua e curvar-me diante as estátuas e fingir reverenciar enquanto escutava o quanto os líderes amam o seu povo. Pouco mais tarde, um relatório sobre direitos humanos com 212 mil palavras, realizado pelas Nações Unidas, iria mostrar o quão cruel esse “amor” poderia ser.

E agora estávamos partindo para esquiar? Localizado há 175 quilômetros ao leste de Pyongyang, próximo da cidade costeira de Wonsan, a estação de esqui de Masik Ryong abriu oficialmente no primeiro dia do ano, quando o marechal Kim Jong-un – o filho mais novo e herdeiro de Kim Jong-il – colocou na cabeça um gorro peludo preto, montou com o teleférico até o topo da pista 6 e chamou sua criação de “impecável”.

“Um milagre”

Legiões de “soldadores-operários” do Exército Popular da Coreia incrustaram onze pistas de esqui em Taehwa, uma montanha 1.362 metros acima do nível do mar coberta de bétulas. Abaixo deles estavam dois hotéis trapezoides com 120 quartos, uma piscina, karaokê e agradáveis restaurantes servindo brotos ao vinagre, salmão incrustrado de sementes de gergelim e suculentos bifes de boi. Não importa que milhões de habitantes estejam desnutridos e obrigados a viver sem energia elétrica. Esse “milagre da construção socialista” levou apenas um ano para ser concluído. Todavia uma grande questão continua sem resposta: para que ela foi construída?

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Parece sem sentido, mas a sensação de alívio era geral agora que o ônibus começou a sacudir. Depois de uma semana preocupando-se com o que a gente poderia ou não fazer, agora estaríamos chegando a um mundo simples de neve e gravidade que qualquer esquiador entenderia. Seria uma estação de esqui reservada unicamente às elites? Seria isso tudo uma espécie de plano elaborado para reforçar ainda mais o regime? Que turista louco viria para cá?

Eu não sei. Mas quando pude avistar a área de esqui, minhas esperanças começaram a surgir. Se qualquer coisa pode injetar luz em uma pedra é o desejo universal de brincar.

Subir à montanha

Uma leve precipitação de neve caiu na primeira manhã. À luz da madrugada, uma dúzia de homens com vassouras se alinhava e limpava sistematicamente as estradas e caminhos. Um telão gigante do tamanho de um outdoor tocava músicas folclóricas enquanto vídeos de flores em movimento, ondas se quebrando e lançamento de mísseis atravessavam pelo monitor. As pistas ainda estavam vazias naquele momento.

Ao contrário da Coréia do Sul, que deverá receber os próximos Jogos Olímpicos de Inverno, a Coreia do Norte não tem algo próximo a uma cultura de esqui. As estimativas afirmam que aproximadamente cinco mil pessoas do país de 23 milhões de habitantes já esquiaram uma vez, mas a grande maioria ao prestar o serviço militar. Antes da estação de esqui de Masik existia outra em uma região remota ao norte do país, mas era muito pequena e possivelmente não deve estar mais aberta. Masik é mais fácil de alcançar, porém sua acessibilidade não é melhor. As entradas custam aproximadamente 30 euros por dia. Os salários médios são de pouco mais de sete euros ao mês. Esquis, botas, bastões, roupas impermeáveis, óculos, capacetes e boas luvas são caras e difíceis de encontrar. Todavia o material de esqui pode ser alugado em Masik. Eu desci as escadas para ir à loja de aluguel abaixo do hotel 2.

Não esperava filas, já que não havia mais do que nove turistas ocidentais na estação, sendo já tinha encontrado todos eles desde a minha chegada. O que vi me surpreendeu: a loja estava repleta de pessoas. Não menos do que duzentos coreanos, sem incluir os 30 instrutores de esqui, esperavam para ser atendidos e poder emprestar qualquer material novo.

“Alguns coreanos têm muito dinheiro já que eles têm acesso a moedas fortes”, revelou posteriormente a guia turística Amanda Carr, que já faz sua 44a. viagem à Coreia do Norte. Esquiar também será gratuito para muitos outros coreanos como premiação por bons resultados nas suas unidades de produção ou algum outro esforço “revolucionário”. Quando Kim Jong-un esteve no local durante a passagem de ano, ele declarou que ninguém pagaria nada durante a sua permanência.

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Esquiar: um direito humano?

O fato da estação de esqui de Masik conseguir entrar em operação é algo notável, especialmente pela dificuldade vivida pelo regime para trazer os teleféricos à Coreia do Norte. A Suíça seria um mercado natural para a compra do mecanismo já que, alegadamente, Kim Jong-un e sua irmã frequentaram escolas em Berna durante alguns anos. Uma empresa com sede em St. Gallen ofereceu um teleférico por aproximadamente sete milhões de francos, mas o governo helvético acabou bloqueando o negocio.

“Isso é obviamente um prestigioso projeto de propaganda para o regime”, declarou na época Marie Avet, porta-voz da Secretaria de Estado para Economia (seco, na sigla em alemão). A venda de “bens de luxo” como teleféricos para a Coreia do Norte viola as sanções impostas pela ONU para punir o regime em Pyongyang pelo seu programa nuclear.

A recusa de atender um direito “básico” irritou fortemente os coreanos do norte. “Os ‘países democráticos’ advogam ‘igualdade entre todos’, ‘defesa dos direitos humanos’ e ‘liberdade’, mas estão cometendo um ato hostil de violação da dignidade de um país soberano com o objetivo de privar coreanos do seu direito elementar de desfrutar de uma vida cultural”, declararam autoridades norte-coreanas através da agência oficial de notícias do governo chinês Xinhua. “Também os suíços teriam gostado de esquiar quando o país ainda era pobre e atrasado. É uma ilusão dizer que esquiar é uma prática das classes mais elevadas.”

O esclarecimento convida à paródia e, portanto, os norte-coreanos tocam num ponto em que, provavelmente, não teriam gostado de ressaltar. O direito de esquiar deveria ser um direito básico, mas por outros aspectos envolvidos: o direito a viajar, o direito à felicidade – o direito de ser responsável pelo sua própria trajetória.

Os teleféricos que foram finalmente instalados na estação de esqui vieram  muito provavelmente através da China na Coreia do Norte. Um relatório da ONU mostrou recentemente em detalhes como os norte-coreanos são hábeis em contornar sanções. Eu contei 20 canhões de neve da Suécia e dois novos tratores removedores de neve da Bombardier. Eu vi também uma loja, onde eram vendidas jaquetas de esqui por 300 dólares e chocolate suíço. Espantei-me com a qualidade.

Quando meu amigo Dan Patittuci, um fotógrafo americano-suíço, e eu subimos com o primeiro teleférico, dois mecânicos apertavam um parafuso em uma torre de sustentação trinta metros abaixo de nós. “Apertem bem forte”, gritei naquele momento aos homens para fazer um gracejo.

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A subida de 710 metros em vertical durou 43 minutos. A subida no Schilthorn, a popular montanha nos Alpes suíços, dura dez minutos menos, mas é verticalmente três vezes mais longa. Muitos coreanos pegam o teleférico sem os esquis. O fato de eles andarem tão devagar deve facilitar o pulo quando as cabines chegam ao alto.

Ao chegarmos, operadores do teleférico se curvaram para nós em saudação de boas vindas. Um homem de Pyongyang posou para uma foto comigo. O garçom no restaurante da estação alpina, uma construção com um grande aquário no interior, declarou-me ser apaixonado por esqui. O estabelecimento estava, todavia, completamente vazio. “Vamos então experimentar a pista na Coreia do Norte”, disse meu amigo e começou a descida.

Caminho do diálogo

As condições estavam perfeitas para esquiar. Os veículos de aplainar a neve subiram apenas uma vez a montanha, o que fazia da pista uma faixa de quinze metros de neve fresca. Quase todos os coreanos permaneceram no pé da montanha, nas pistas para iniciantes. Assim tínhamos praticamente a parte superior das montanhas só para nós. A descida inteira foi feita na neve fresca. Aproximadamente uma hora depois, fizemos mais uma decida, cortando a neve virgem ao lado das marcas deixadas por nós mesmos.

“É a primeira vez em uma semana que ninguém está aqui para nos vigiar”, nos contou Jana Panova, uma estudante de direito da República Tcheca que estava com o nosso grupo. “É impressionante”.

Não éramos os únicos a aproveitar desse enfraquecimento da vigilância. Na base das pistas os norte-coreanos estavam treinando. Claramente dava para perceber que a maioria estava se equilibrando pela primeira vez sobre os esquis, ou a treinar os movimentos de freio, muitas vezes com ajuda das barreiras de proteção em laranja. Crianças risonhas e felizes brincavam com seus trenos. Nos teleféricos era possível ver os norte-coreanos, apertando-se um contra os outros, a caminho do pico. Ao descer nos saudavam com entusiasmo.

“Para os nativos isso é algo muito bom”, esclareceu um guia de viagem norte-coreano, que por segurança chamo de Sr. Kim. “É algo novo para nós. Vemos muita gente de Wonsan, que visita a região por apenas um dia.”

Wonsan, uma cidade de 200 mil habitantes, está localizada 24 quilômetros ao leste da estação de esqui. Mas para visitar o local, essas pessoas necessitam de uma autorização de viagem e uma possibilidade de transporte, sem falar de dinheiro em espécie.

Eu dormi bem no Hotel 1, que poderia ter muito bem sido emprestado da estância de turismo suíça de Saas Fee. O quarto tinha paredes de madeira de bom gosto, piso aquecido e camas sólidas, com lençóis frescos. Além disso, uma generosa ducha. As janelas impediam praticamente a entrada do barulho feito pelo gigantesco monitor lá fora. Até mesmo as maçanetas pareciam ter um estilo suíço.

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Nosso último dia amanheceu frio e claro, o que fez a neve ficar mais fina e macia do que antes. Além disso, apareceram mais pessoas na estação de esqui. Um homem trajando um uniforme triste em cor oliva fazia fotos da sua família na neve.

Uma mulher nativa, de pequena estatura, pediu a mim devido ao meu tamanho – dois metros – se podia retirar para ela uma estalactite de gelo que escorria de um teto. Eu fiz esse favor. Os professores de esqui foram à pista 6 divididos em três grupos. Cada grupo fazia seus exercícios. Quando tentei acompanhar, fui repreendido pelo instrutor-chefe com um forte grito de “Pare”.

Diálogo

A estação de esqui e todos os outros projetos de prestígio, construídos ao custo de milhões de dólares, “não teriam nenhum efeito positivo imediato sobre as condições atuais de vida da população”, escreve o recém-publicado relatório da ONU sobre a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte, o que é difícil de argumentar.

Ao mesmo tempo precisamos dizer: vir aqui e lidar com norte-coreanos sem o controle de guias, saudá-los nos teleféricos, compartilhar com eles o prazer de esquiar, mesmo se isso parece tão frívolo, consegue resolver o que a diplomacia não atinge: dar um rosto concreto aos “inimigos” e nos aproximar de algo um pouco mais próximo da realidade.

“Não adianta ficar em casa e dizer que você não deve vir a um lugar como este”, disse Pete Tupper, um britânico que dirige um negócio de esqui na China e veio à Masik para ajudar a ensinar alguns guias como esquiar. “Isso é apenas ficar resmungando. O turismo cria o diálogo.”

Todas imagens: Patitucci Photo

O regime investiu nos últimos anos entre 200 e 530 milhões de dólares nem construções, afrescos, estátuas e outros instrumentos de propaganda e culto à personalidade, afirma o relatório da ONU.

A Coreia do Norte também gastou 35 milhões de dólares na construção da estação de esqui de Masik Ryong e pelo menos 67,6 milhões de dólares em obras adicionais, como mostra o projeto apresentado no site NKNews.org.

Outros “projetos de prestígio” foram criados em Pyongyang, a capital reservada somente às famílias mais leais. Lá é possível visitar o parque aquático de Munsu, com piscinas, criadouros de golfinhos e parque de diversão.

Adaptação: Alexander Thoele

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