Será que as filhas da Índia são um bom retorno de investimento?
O primeiro título de investimento privado baseado em desempenho de desenvolvimento social tem por objetivo manter as meninas da Índia rural na escola. Mas será que projetos como esse da fundação Optimus do banco suíço UBS conseguirão mudar as atitudes da sociedade que levam às altas taxas de evasão escolar?
Nani não tem muito tempo para jornalistas, especialmente quando há um bezerro atacando a sua lavoura de milho. A avó cheia de energia sai correndo atrás do bovino oportunista e ele é espantado para longe. Finalmente, ela tem tempo de falar com a swissinfo.ch à sombra de uma mangueira.
“Eu não fui à escola. No meu tempo, não havia escolas por perto e a nossa família nunca nos mandou, então nós não fomos”, ela diz.
Meio século depois, a neta de Nani, Maya, praticamente não está numa situação melhor. Ela costumava ir à escola, mas abandonou os estudos porque alguém tinha que pastorear as cabras da família. No vilarejo de Jaliya – e por todo o Bhilwara, distrito no estado do Rajastão, noroeste da Índia – cuidar das cabras significa o fim da linha em termos de educação para as meninas.
Poucos pais estão dispostos a mandar suas filhas à escola além do nível elementar, até mesmo às escolas gratuitas do governo. Já os filhos, por outro lado, são despachados para escolas particulares, se a família consegue juntar recursos para bancar as despesas.
É uma convicção amplamente difundida a ideia de que uma garota está fadada a deixar a família e, portanto, não há o que se ganhar em educá-la. Assim sendo, ao invés de se tornarem alunas diligentes com a promessa de um futuro melhor, elas acabam se tornando pastoras de cabras.
Como Maya de 14 anos, muitas delas são dadas em casamento e estão apenas matando o tempo até serem enviadas para os seus maridos e parentes, onde deverão ajudar no trabalho doméstico e ter filhos.
É difícil de acreditar, mas Maya é uma das mais sortudas. Ela foi persuadida a voltar à escola como parte de um experimento pioneiro, que aplica investimento privado na área da educação, para crianças de origem humilde; uma tarefa normalmente reservada aos governos, doadores filantrópicos e organizações sem fins lucrativos.
Conhecido na sigla em inglês como DIB – Development Impact Bond, ou Título de Impacto do Desenvolvimento – o investimento consiste em um pagamento adiantado feito pela fundação UBS OptimusLink externo à organização não governamental Educate GirlsLink externo (Eduque Meninas) mediante o compromisso de que a ONG cumprirá uma missão de desenvolvimento que renderá dividendos.
A Educate Girls precisa trazer de volta para a escola meninas entre sete e 14 anos de idade e melhorar o desempenho educacional (em matemática, inglês e Hindi) em cerca de 160 colégios públicos no distrito de Bhilwara, no Rajastão. Quase 7000 crianças recebem apoio nos 260 quilômetros quadrados cobertos pelo projeto.
O investimento feito pela fundação do UBS será retornado no valor original mais juros, se as metas educacionais forem atingidas ou superadas. O conceito tem por objetivo atrair entidades privadas ao setor de desenvolvimento e angariar fundos para causas nobres.
Estrutura de pagamento do DIB
A fundação baseada em Zurique Optimus UBS fez um pagamento adiantado de US$ 277,000 em duas parcelas. Após um período de três anos (em 2018), a fundação baseada em Londres, Child Investment Fund Fundation (CIFF) – Fundo para Investimento nas Crianças – pagará rendimentos à UBS Optimus, mas somente mediante resultados educacionais bem-sucedidos (até um máximo de 15% de juros sobre o investimento inicial).
Dessa forma, enquanto investidor, a fundação UBS Optimus Foundation tem o risco de perder dinheiro se a meta de educar as meninas não for atingida, ou de fazer lucro se ela for superada. A ONG Educate Girls também receberá uma parte dos rendimentos se atingir ou superar o alvo. Uma empresa independente terceirizada, IDinsight, avalia anualmente de perto cerca de até 70% dos estudantes, para determinar até que ponto os objetivos estão sendo alcançados.
Novo modelo
“Algumas pessoas pensam que se trata apenas de fazer dinheiro, mas nenhum investidor se envolveria nesse tipo de projeto se esse fosse o único motivo. O investimento é para aqueles que estão interessados em um impacto social antes de mais nada, somado a um retorno financeiro baseado em resultados”, diz Maya Ziswiler, chefe de inovação social e financeira na fundação UBS Optimus em Zurique. “A porcentagem de juros sobre o investimento está atrelada ao risco assumido no adiantamento feito pelos investidores e qualquer ganho financeiro será reutilizado em outros projetos”.
O UBS já possui cerca de dez iniciativas filantrópicas atuando na Índia nas áreas de educação, desenvolvimento na primeira infância, saúde e proteção infantil. O DIB foi uma boa opção porque a fundação foca em resultados e tem experiência em angariar fundos de indivíduos com alto capital privado, que se interessam por filantropia e investimento de impacto. Após o projeto piloto na Índia, a fundação UBS Optimus planeja entrar de cabeça e lançar um DIB de larga escala, para levantar fundos de investidores privados.
“Podemos atrair investidores trazendo a eficiência do setor privado, focando nos resultados e demonstrando que DIBs oferecem maior custo-benefício que outras alternativas”, diz Ziswiler.
Não foram apenas os investidores que precisaram ser convencidos. Inicialmente havia um ceticismo por parte da equipe do Educate Girls, quando a parceria do DIB foi anunciada.
“Por que vocês estão transformando um assistente social em um homem de negócios?”, essa foi a primeira reação de Vikram Solanki, gerente de projetos na Educate Girls, quando convidado para gerenciar o projeto. A equipe dele teve de se adaptar a um novo modo de trabalhar, onde resultados contam mais do que só participação.
“Nós tivemos que nos tornar mais afeitos à tecnologia e prestar maior atenção para entender qual atividade dava qual resultado”.
Um dos primeiros desafios foi aprender a lidar com registro e análise de dados. Os detalhes de cada uma das aulas do Educate Girls tinham que ser inseridos em um servidor central por meio de um smartphone, cuja localização é verificada por geoposicionamento. Desse modo, se os avaliadores notassem que o desempenho em inglês estava fraco, a Educate Girls pedia aos voluntários e equipes que focassem mais no assunto durante as aulas especiais, que acontecem três vezes por semana. Isso de fato aconteceu e mediante investigação o problema foi identificado e corrigido: faltava fluência em inglês aos professores e as crianças tinham dificuldade para diferenciar letras maiúsculas e minúsculas.
O modelo do DIB também levou a uma reflexão a respeito das ideias pré-concebidas que estavam arraigadas no setor de desenvolvimento. Por exemplo, um método habitual de mobilizar a comunidade era mostrar um filme sobre a importância de educar meninas. Essa estratégia, porém, não conseguiu mudar as atitudes locais, muito embora tenha funcionado em outros lugares.
“Os resultados mostraram que a estratégia mais eficaz para a região de Bhilwara era o aconselhamento dos pais, então o time mudou a sua abordagem para quase só focar nos pais das garotas”, diz Solanki.
Outro conceito pré-estabelecido era designar os assistentes sociais a uma área específica, para conseguir ganhar a confiança dos locais e se tornar o especialista daquela comunidade. Entretanto, a Educate Girls abandonou essa abordagem ao perceber que os membros da equipe estavam ficando frustrados, quando seus vilarejos não estavam progredindo conforme o esperado.
“Estar em um novo ambiente permite a eles (os assistentes sociais) aprender com os erros. Isso também nos ajuda a direcionar os melhores profissionais para as áreas mais necessitadas”, diz Bhupendra Kumar Choudhary, que é vice de Solanki.
Entretanto, a maior mudança foi que tiveram de se preparar para ser julgados perante outras escolas, na avaliação anual conduzida pela empresa tercerizada IDinsight. Assistentes sociais não estão acostumados à ideia de competição e a avaliação com monitoramento empírico rigoroso suscitou alguns desafios inesperados.
“Professores em escolas vizinhas que não fazem parte do projeto conseguiram ter acesso ao nosso material de ensino e como resultado os alunos deles também se saíram melhor. Esse efeito de contágio precisa ser levado em conta, ou poderá resultar em competição negativa”, diz Solanki.
A equipe está sob pressão para se sair bem, pois há muita coisa em jogo, inclusive o próprio bônus de performance dos trabalhadores. Os resultados do segundo ano do projeto mostram que a meta de rematrícula de meninas que abandonaram a escola foi quase atingida (87,7%), mas o Educate Girls só conseguiu alcançar metade (50,7%) do objetivo de melhora educacional para os três anos.
Tarefa difícil
As expectativas sobre Maya são grandes. Após visitas regulares e muita persistência, os enviados da Educate Girls conseguiram convencer Nani a deixar a neta voltar à escola. Agora um tio está cuidando das problemáticas cabras e os sogros de Maya também concordaram em deixá-la estudar.
“Contratar um trabalhador rural para substituir Maya nos custa de INR250 a INR300 por dia. Se nós a mandamos para a escola é porque temos a esperança de que ela vai aprender algo”, diz Nani.
Mas escolaridade, especialmente além do nível elementar, é um luxo nessas regiões. Mal fazia um mês que Maya tinha retornado à escola, quando ela teve um contratempo.
“Eu não pude ir à escola nos últimos três dias porque mamãe está doente e eu tenho que cuidar dela”, diz Maya.
Sua amiga Naina, que vive no mesmo vilarejo, também está matando aula. Ela foi uma das meninas mais difíceis que a Educate Girls já conseguiu resgatar de volta à escola. Apesar da resistência, ela agora diz gostar das lições, especialmente matemática.
“Eu não fui à escola nem hoje, nem ontem, porque minha mãe foi visitar minha avó na casa dela e eu fiquei cuidando do nosso lar”, ela diz.
Portanto, apesar do bom registro de matrículas, a frequência irregular das meninas levanta dúvidas sobre quanta educação elas estão realmente recebendo. Se os alunos chegam a cabular 40 dias de aulas eles perdem a vaga.
“Pedimos aos professores que sejam um pouco tolerantes com elas no começo, já que elas têm muitas responsabilidades e estão se ajustando”, diz Solanki. De acordo com ele, a época de colheita de laranja e de goiaba é um momento especialmente “tenso” porque toda ajuda é necessária no campo, resultando em abstenções em massa.
Além de ter que se equilibrar entre afazeres domésticos, as estudantes que retornam à escola também precisam compensar o tempo perdido. A política do governo baseada em matrículas por idade significa que elas não têm tempo de recuperar a diferença em relação aos colegas.
Sentimentos proibidos
Nem todo mundo está convencido de que uma tentativa de três anos para reengajar alunas que abandonaram os estudos e melhorar o desempenho educacional vai trazer mudanças duradouras nas regiões de atuação do projeto DIB.
“As meninas abandonam a escola porque elas não conseguem dar conta do trabalho doméstico, além do estudo e dos deveres escolares. Algo que os meninos não precisam fazer”, diz Usha Choudhary, diretora do programa Vikalp Sansthan, uma ONG que trabalha com direitos da criança no estado. Entretanto, para Choudhary -que resistiu à tentativa dos pais de dar-lhe em casamento aos 14 anos- a razão pela qual as meninas estão ficando para trás na educação é o medo que a sociedade tem da sexualidade delas.
“Educação conjunta de meninos e meninas é vista como uma ameaça, pois a menina pode se enamorar e fugir com um menino na escola, ou a caminho dela”, ela diz. “Todo mundo gosta de ver romance no cinema, mas quando se trata das próprias filhas deles, isso se torna algo ruim.”
Uma das consequências do medo da sexualidade das meninas é o casamento infantil. De acordo com dados do último censo de 2011, o Rajastão lidera nacionalmente na incidência de matrimônios infantis de meninas, correspondendo a 8.3% de todas as “mulheres” casadas no estado. O distrito de Bhilwara, onde fica baseado o projeto da Educate Girls, é o primeiro do ranking nacional em termos de proporção de garotas menores de idade casadas, com 36,9% na média e 40% nas áreas rurais.
Apesar de as garotas normalmente só irem morar com os maridos quando completam 15 anos ou mais, a intenção é mostrar à comunidade que elas já estão comprometidas.
“É a forma da família dizer: nós vamos escolher por quem você sentirá desejo e com quem terá relações”, diz Choudhary
Apesar de todo o esforço do Educate Girls, são normalmente esses tipos de influências externas da sociedade que recorrentemente ditam se os projetos vão ter uma influência duradoura ou não. Especialmente em Bhilwara, onde os casamentos infantis são bastante comuns apesar de serem ilegais.
“Eu registrei ocorrência contra 13 casos de casamento infantil desde 2011. A mais jovem tinha dois anos de idade, mas na média as meninas tinham entre 13 e 14 anos”, diz Suman Trivedi, à frente do Comitê do Bem-Estar da Crianças da região de Bhilwara, um órgão do governo responsável pelo bem-estar dos menores. De acordo com ela, a maioria das meninas aceita ser dada em casamento cedo, desde que goste do menino. Caso contrário, elas abordam as autoridades ou fogem de casa com outro menino.
“O que mais vemos são casos de fuga, seguidos de desaparecimento de crianças e de trabalhadores infantis”, diz Trivedi.
As que fogem são normalmente colocadas pela corte em abrigos para jovens, porque são menores, e lá permanecem até completarem 18 anos. Devido à falta de abrigos em Bhilwara, elas precisam ser enviadas a outros lugares.
Veena Maherchandani, superintendente do abrigo Balika Grah (refúgio das meninas) comandado pelo governo na cidade de Udaipur, diz que as garotas que lhe são enviadas são iletradas e não conseguem nem escrever o próprio nome. “Essas na idade entre os 16 e 18 anos são muito difíceis de se reintegrar no sistema escolar, então oferecemos treinamento vocacional ao invés disso”, diz ela. Cerca de metade das internas está grávida.
“Nós não temos equipe o suficiente para lidar com tantas meninas. As normas dizem que é necessário um cuidador para cada oito garotas e atualmente nós temos três para 32 internas”, diz Meena Sharma da Sociedade de Proteção Integral à Criança, órgão do governo que cuida de quatro abrigos para jovens no distrito.
“O dinheiro que vem do exterior está sendo gasto em educação, saneamento básico e meio-ambiente, mas ninguém está administrando abrigos”, diz ela.
Perspectiva futura
É claro que todo o objetivo do projeto DIB é garantir que menos meninas precisem buscar refúgio nos abrigos. Mas não há como negar que esse é um projeto de apenas três anos e ainda está por ser visto se as garotas que foram matriculadas terão capacidade de continuar na escola ou não.
“As metas serão atingidas, mas o que vai acontecer com as estudantes após um ou dois anos? Somente se elas concluírem o segundo grau terão uma chance”, diz Choudhary.
O diretor de projeto, Solanki, conta que o Educate Girls nunca abandonou por completo nenhuma das áreas onde trabalhou anteriormente. É provável que continuará operando em Bhilwara fazendo “monitoramento e diagnóstico” até mesmo após a conclusão do projeto, ele diz.
“Em termos de sustentabilidade do DIB, nós fizemos questão de que a relação com o governo estadual fosse boa e esperamos que ele se interesse por financiar um projeto assim mais adiante. O DIB também tem gerado muita divulgação do Educate Girls e do trabalho deles, o que significa que há potencial para atrair outros financiadores”, diz Ziswiller da UBS.
De acordo com ela, economias emergentes como a Índia são ideais para financiamentos inovadores como o DIB, já que deverão receber cada vez menos ajuda para desenvolvimento oriunda do exterior. Ela acredita que o governo tem a capacidade de vir a se tornar um financiador de resultados para os DIBs.
Mas quantidade nenhuma de dinheiro ou apoio pode garantir uma mudança nas atitudes em relação às meninas. Mesmo durante o andamento do projeto, pairam sobre as cabeças das jovens preocupações como a ajuda em casa e no campo, o casamento precoce e o tratamento discriminatório dado às filhas. Também não facilita que em vilarejos como Jaliya não existem exemplos femininos que sirvam de modelo de inspiração.
“Não há uma mulher no vilarejo que seja casada e esteja trabalhando”, diz Nani.
O melhor que ela pode desejar para a neta Maya é um emprego como professora na escola ou Anganwadi (enfermeira de cuidados primários).
O Rajastão pode ainda estar bem aquém de outros estados indianos em se tratando de casamentos arranjados de menores e do combate à evasão escolar, mas já dá sinais positivos de uma mudança de atitude.
Entre 2005 e 2015, a percentagem de mulheres entre 20 a 24 anos que relataram terem sido dadas em casamento antes dos 18 caiu praticamente pela metade no estado (de 65,2% para 35,4%). E entre 2010 e 2015, a taxa de meninas matriculadas nos dois últimos anos do currículo escolar aumentou de 36% para 40%.
Talvez seja aí onde os DIBs podem fazer a diferença – ajudando a acelerar o ritmo de mudança nos vilarejos do Rajastão, de modo que eles tenham a chance de se equiparar logo ao resto do país. Portanto, mesmo que por hora os benefícios a Maya e suas colegas sejam poucos, no futuro elas vão querer que suas próprias filhas concluam a escola.
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Essa reportagem foi produzida como parte do En Quête d’AilleursLink externo (Olhando Além), um programa de intercâmbio entre jornalistas da Suíça e países em desenvolvimento.
Adaptação: Marina Wentzel
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