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Medo da máfia impele MP suíço de agir

Le procureur général de la Confédération Stefan Blättler
O novo Procurador Federal Stefan Blättler quer tornar a luta contra as máfias na Suíça uma prioridade máxima. © Keystone / Alessandro Della Valle

Após uma série de fracassos, o Ministério Público Federal demonstra pouco interesse em investigar a máfia na Suíça. Empresários do cantão do Ticino pedem ajuda, denunciando o controle de clãs criminosos sobre a economia local. Mas esse perigo não se limita ao cantão que faz fronteira com a Itália e requer uma nova estratégia.

“Que a máfia, em suas diversas formas, também está presente na Suíça é inegável. Mas, atualmente, já não é mais suficiente constatar a existência do fenômeno. Não é mais suficiente analisar certas situações. Também é preciso lutar, ou seja, transformar os elementos de investigação em acusações.”

Foi com essas palavras que o novo procurador-geral da Confederação, Stefan Blättler, abriu uma mesa redonda sobre a questão da infiltração criminosa, realizada em Mendrisio, no cantão do Ticino, em 19 de maio de 2022. O encontro foi organizado pela seção ticinesa da Associação Suíça de Empreiteiros, uma organização de empresários do setor da construção e da engenharia civil.

Os empresários do Ticino organizaram essa mesa redonda porque têm medo. Não tanto das organizações criminosas em si, mas da enorme concorrência exercida pelas empresas infiltradas por organizações mafiosas. E esse risco não se limita ao Ticino. Tentamos, portanto, contextualizar o problema.

Nos últimos anos, houve uma transformação na presença do crime organizado italiano na Suíça, explica a advogada Rosa Cappa, moradora de Lugano e atuante no escritório Gaggini & Partners. “As organizações criminosas não se contentam mais com apenas possuir contas bancárias na Confederação: elas também lavam e investem seu capital ilícito em atividades econômicas como a construção e a gastronomia, gerando uma concorrência desleal para empresas locais.”

De 2003 a 2015, Rosa Cappa trabalhou no Ministério Público Federal da Suíça, onde foi responsável principalmente por investigações sobre o crime organizado na Itália. Recentemente, ela decidiu expressar publicamente sua preocupação a fim de aumentar a conscientização do público.

“Nos últimos anos, o Ministério Público Federal não tem sido muito reativo em suas investigações e tem agido quase exclusivamente com base em cartas rogatórias italianas”, explica Cappa. Durante a chefia do antigo procurador-geral Michael Lauber, a questão da infiltração da máfia na economia suíça nunca foi uma prioridade, como demonstra o fato de que os funcionários do MPF responsáveis por esse tipo de investigação estarem sediados em Berna, longe da realidade que eles deveriam estar monitorando.”

Seu sucessor, Stefan Blättler, expressou sua intenção de colocar a questão no topo de sua agenda. Sua primeira viagem ao exterior foi à Itália, precisamente para coordenar tais investigações com seus colegas transalpinos.

De acordo com nossas informações, um novo magistrado foi nomeado em Berna para apoiar a equipe formada até agora pelos procuradores Sergio Mastroianni e Raffaele Caccese.

Suíça: um refúgio para os mafiosos?

A situação não diz respeito apenas ao Ticino. Muito pelo contrário: os dados publicados pela Polícia Federal suíça (Fedpol) mostram a presença de organizações criminosas italianas em 18 cantões suíços. E, segundo Sergio Mastroianni, a primeira língua da ‘Ndrangheta na Suíça agora é o Schwyzerdütsch (suíço-alemão).

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A Polícia Federal dedicou grande parte de seu relatório de 2021 à presença de tais organizações na Confederação. Isso se deve à frequência com que o assunto tem surgido nas notícias, em razão das muitas investigações que afetaram a Suíça entre 2020 e 2021.

Esses eventos não apenas confirmaram a infiltração de clãs mafiosos em vários cantões e setores econômicos como a gastronomia, a construção civil e o setor imobiliário, mas também mostraram que a Suíça havia se tornado uma espécie de refúgio para os mafiosos.

É o que afirma Alessandra Dolci, chefe da unidade antimáfia em Milão. Dolci relata que vários réus lhe disseram que se sentem mais seguros na Suíça do que na Itália. “Isso se dá porque a lei suíça não tem nada equivalente ao nosso artigo 416-bis”, resume.

Esse é o artigo que define o crime de associação do tipo mafiosa no Código Penal italiano. Na Suíça, a “participação” ou o “apoio a uma organização criminosa” é de fato punível sob o artigo 260 do Código Penal. Ainda assim, embora tenha sido reforçado recentemente, as medidas preventivas e repressivas que ele permite não são comparáveis às da Itália.

Poucas acusações

Nos últimos anos, o número de acusações levadas ao tribunal por esse tipo de crime (no contexto de organizações mafiosas) foi baixo.

Talvez o caso mais importante a ser levado ao Tribunal Penal Federal (TPF) em Bellinzona tenha sido o de Franco Longo. Conhecido como “o banqueiro da ‘Ndrangheta”, o homem se estabeleceu no Ticino e abriu várias empresas atuantes no setor da construção. Ele havia começado a lavar o dinheiro dos temidos irmãos Martino, os chefes lombardos do poderoso clã calabrês Libri-De Stefano-Tegano.

Para escapar de uma extradição para a Itália, Longo concordou cooperar com a investigação suíça, admitir o ocorrido e ser julgado pelo Tribunal Penal Federal. Em 2015, no entanto, os juízes rejeitaram o acordo entre Longo e a procuradora Dounia Rezzonico.

Dois anos mais tarde, Longo voltou ao tribunal junto a seu corréu Oliver Camponovo, um ex-político do PLR/FDP e fiduciário ticinês. O italiano foi condenado a cinco anos e meio de prisão por participação em organização criminosa e lavagem de dinheiro. O fiduciário, por sua vez, recebeu uma pena de três anos por lavagem de dinheiro agravada, com direito à liberdade condicional.

Lavando dinheiro, mas sem intenção

Caso encerrado? De forma alguma. Recentemente, o Tribunal Federal (TF) aceitou um recurso de Oliver Camponovo e enviou o caso de volta para Bellinzona a fim de realizar um novo julgamento, não por lavagem de dinheiro agravada, mas por uma simples “falha em exercer a devida diligência em relação às transações financeiras”.

De acordo com os juízes do Tribunal Federal, os fundos em questão tinham de fato uma origem ilícita, mas não há provas de que o fiduciário tivesse conhecimento disso. É, portanto, impossível estabelecer a sua intenção de lavar o dinheiro.

Para Rosa Cappa, essa decisão “demonstra as dificuldades desse tipo de investigação e poderia infelizmente ter um efeito desencorajador para os investigadores”. A ex-procuradora lembra que “a decisão do TF confirmou que o cliente do fiduciário, Franco Longo, pertencia à ‘Ndrangheta e que ele operava no Ticino em nome dos clãs”.

Outro caso que levou a uma condenação envolvia um cidadão italiano que morava no cantão de Berna e era conhecido como Cosimo “O Suíço”. Aqui também, o caso foi marcado por várias idas e vindas entre Bellinzona e Lausanne, onde fica o Tribunal Federal.

No final de 2021, o Tribunal de Apelação do TPF finalmente reduziu sua sentença, principalmente devido à “violação do princípio de celeridade”. Nessa decisão, os juízes de Bellinzona lembram que o homem participara das atividades da filial da ‘Ndrangheta’ em Milão entre 2003 e 2011.

Extraditar ou processar?

Como mostram os exemplos, esses casos são complexos não apenas no que diz respeito à investigação, mas também em termos legais. É por isso que há muito tempo a Suíça prefere extraditar os supostos mafiosos para a Itália.

Foi o que aconteceu no caso da cosca de Frauenfeld, a primeira célula da ‘Ndrangheta identificada na Suíça, ativa desde os anos 70. Um vídeo de suas reuniões foi divulgado após os dois supostos líderes da célula suíça, Antonio Nesci e Raffaele Albanese, serem presos na Itália.

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A Confederação estava frente a um dilema: o que fazer com os outros membros da organização que viviam na Suíça? O MPF estava investigando esses supostos mafiosos de Frauenfeld desde 2009. No entanto, a procuradoria suíça temia mais um fracasso após o caso Quatur, uma outra investigação sobre a ‘Ndrangheta que havia sido abandonada devido a erros investigativos e processuais.

Berna optou então pela estratégia menos arriscada: prendeu os suspeitos em Frauenfeld e os extraditou para a Itália. O problema foi que os réus suíços recorreram e foram absolvidos na Itália, precisamente porque não foi possível provar que tinham agido como mafiosos na Suíça.

“A ideia de [poder] recorrer à Itália mesmo que o crime seja cometido na Suíça, como neste caso, é enganosa”, disse Antonio Nicaso na ocasião da absolvição. Nicaso é professor universitário no Canadá, autor de dezenas de livros sobre a ‘Ndrangheta e considerado um dos maiores especialistas do mundo sobre essa poderosa organização criminosa. “É hora de a Confederação começar a assumir a responsabilidade e lidar com o problema. Há um motivo para essas pessoas terem ido para a Suíça.”

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Questão de competência

“É essencial que as investigações sejam voltadas para as atividades mais delicadas, como irregularidades em processos de licitações públicas, fraudes em falência e violações de regulamentos de proteção ao trabalhador e seguridade social”, diz a ex-procuradora Rosa Cappa. “Tais elementos podem revelar a presença de uma organização criminosa, mas nem sempre as autoridades fazem essa conexão”.

A construção do Alptransit é um possível exemplo. Após uma queixa de alguns trabalhadores e uma investigação da RSI (Rádio e Televisão Suíça de língua italiana), o Ministério Público do Ticino abriu uma investigação sobre a empresa italiana GCF Generali Costruzioni Ferroviarie, que atua na instalação de equipamentos ferroviários.

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Como parte de um consórcio com outras empresas, a GCF havia conseguido esse importante contrato público, tendo apresentado uma proposta 30% menor do que a dos outros finalistas. O canteiro de obras foi marcado por abusos contra os trabalhadores e um buraco de cerca de três milhões de francos suíços em contribuições à seguridade social.

Mas a investigação do Ministério Público ticinês foi cheia de lacunas, como mostrou outra investigação da RSI. O Ministério Público Federal não tinha jurisdição sobre o caso – embora fosse relacionado a um dos maiores canteiros de obras da Suíça – e, portanto, não pôde fazer nada.

Por ironia, a GCF foi recentemente implicada numa investigação italiana justamente porque teria favorecido clãs mafiosos em grandes contratos ferroviários.

Enquanto isso, o Ministério Público Federal, teoricamente responsável por crimes transnacionais, está atolado em toda uma série de delitos menores. Todos os meses, o MPF tem que lidar com dezenas de casos de dinheiro falso, colisões de helicópteros, violência contra controladores de trens e, mais recentemente, violações da lei Covid-19. Essas infrações estão sob jurisdição federal, mas, na maioria dos casos, envolvem penas muito pequenas.

Os procuradores federais estão, portanto, sobrecarregados com casos menos importantes, ao mesmo tempo em que não podem investigar a influência da máfia no maior canteiro de obras da Suíça. Talvez também seja preciso mudar algo nesse sentido.

Fundado pelos jornalistas investigativos Marie Maurisse e François Pilet, o Gotham City é um boletim informativo de investigação judiciária especializado em crimes econômicos.

Toda semana, ele informa seus assinantes sobre casos de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro ligados ao centro financeiro suíço, com base em documentos judiciais disponíveis publicamente.

Todo mês, o Gotham City seleciona um de seus artigos para aumentá-lo e oferecê-lo gratuitamente aos leitores e leitoras da SWI swissinfo.ch.

Adaptação: Clarice Dominguez
(Edição: Fernando Hirschy)

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