Quando as “dickpics” são pornografia, assédio ou violência
Quase metade das mulheres já recebeu uma imagem de órgãos sexuais. Agora elas podem denunciar na Suíça esse tipo de assédio cibernético com apenas poucos cliques. É o começo de uma solução para um problema sobre o qual ainda há pouca reflexão nas leis em todo o mundo.
Também na Suíça existe o assédio sexual. Em uma pesquisa realizada em 2019Link externo, uma em cada quatro mulheres disse que já havia recebido “imagens sexualmente explícitas”. Em todo o mundo, os números são ainda mais altos: de acordo com uma pesquisa de opiniãoLink externo, quase metade das mulheres já recebeu alguma vez fotos de genitais masculinos.
Muitas ignoram o assédio, pois o caminho legal é muitas vezes longo e caro, além de humilhante. É o que explica Jolanda Spiess-Hegglin, fundadora e diretora-executiva da #NetzCourage (Rede Coragem, em tradução livre). Este projeto sem fins lucrativos tem como objetivo incentivar as mulheres a estabelecerem limites para os abusadores. O meio para fazer isso é um gerador de denúncias chamado #NetzPigCock (rede pênis de porco, em tradução livre). Ele oferece a possibilidade de denunciar fotos de pênis não solicitadas – as chamadas dickpics – dentro de 60 segundos.
No portal Netzpigcock.chLink externo, as vítimas podem carregar a foto e fornecer detalhes sobre o incidente. Posteriormente #NetzPigCock gera um arquivo em formato PDF, que pode ser impresso e enviado a um Ministério Público cantonal. Segundo a associação representada por Jolanda Spiess-HegglinLink externo, os dados são armazenados apenas localmente. Ela, que já foi política no cantão de Zug, foi premiada este ano com o Prêmio Somazzi “por seu trabalho pioneiro em prol de mais respeito e dignidade humana e contra o ódio na Internet, que é particularmente dirigido contra as mulheres”, de acordo com os organizadores do prêmio.
Nenhuma lei para assédio sexual
De acordo com os iniciadores, o gerador de denúncias, que foi lançado em março, registrou 1178 downloads de queixas criminais em seu primeiro mês. Não está claro quantas investigações criminais foram desencadeadas como resultado, pois estas são enviadas diretamente aos promotores. A Conferência Cantonal dos Comandantes da Polícia (KKPKS, na sigla em alemão) ainda não tem um panorama das denúncias de assédio sexual na Internet recebidas em toda a Suíça. Em geral, porém, todas os tipos de delitos digitais aumentaram durante a pandemia, diz Adrian Gaugler, porta-voz do KKPKS.
“O problema então se tornou visível. Agora é necessária uma lei contra o abuso sexual na Internet.” Jolanda Spiess-Hegglin
Mas o número de registros mostra a necessidade de ação, diz Spiess-Hegglin: “A violência sexual e sexualizada é um grande problema, e a política não pode mais negar isso.” Somente um processo penal consistente cria uma consciência mais ampla do problema, e possui um efeito dissuasivo.
Spiess-Hegglin critica o fato de que na Suíça, como na maioria dos países, não existe uma lei adequada contra o assédio sexual no espaço digital. A violência on-line é regida por uma lei do século passado, que regula as agressões da mesma forma. A lei do país sobre delitos sexuais foi emendada pela última vez há 30 anos.
Na Suíça, o envio não solicitado de fotos de pênis é considerado um delito de ato pornográfico. De acordo com o Artigo 197, parágrafo 2 do Código Penal Suíço, qualquer pessoa que “ofereça de forma não solicitada” escritos pornográficos, gravações de som ou imagem, imagens ou outros objetos desse tipo será punida com uma multa. Se a pessoa que recebe uma imagem de pênis não solicitada for menor de 16 anos, a lei prevê uma pena de prisão de até três anos. Mas isso é suficiente?
Países escandinavos como pioneiros
Existe a necessidade de revisão em termos de terminologia e delitos em muitos níveis – e em muitos países. A fim de sair da “zona cinzenta”, vários países revisaram suas leis penais sexuais: a Finlândia, por exemplo, está no processo de esclarecimento sobre a questão das fotos de pênis. O Parlamento finlandês debate atualmente um projeto de lei que imporia uma pena de prisão de até seis meses pelo envio de fotos de pênis não solicitadas e outras fotos explícitas – mesmo que o conteúdo seja dirigido a adultos.
Também na Suíça a legislação está atrasada em relação à realidade. Uma revisão da Lei de Crimes Sexuais tramita atualmente no Parlamento federal. Entre outras coisas, o artigo sobre assédio sexualLink externo está sendo discutido.
Será que os dickpics farão parte dela no futuro? O assunto só será examinado no parlamento no outono. Mas já agora a questão ameaça se tornar sujeita à interpretação dos tribunais.
Em sua resposta à consultaLink externo sobre a revisão da Lei de Crimes Sexuais, a #NetzCourage deu as boas-vindas ao fato de que o delito de assédio sexual deve ser suplementado pelo termo “imagens”, e assim não apenas atos ou palavras podem ser punidos, mas também o envio eletrônico de imagens com conotação sexual. Ao mesmo tempo, a Rede Coragem expressou seu desapontamento com a “oportunidade perdida de adaptar consequentemente o delito de assédio sexual ao assédio na Internet.”
“A misoginia e o sexismo se tornam invisíveis, e assim permanecem socialmente aceitáveis.” Susanne Kaiser
Por que homens enviam fotos de pênis?
A jornalista alemã Susanne Kaiser, autora do livro “masculinidade políticaLink externo“, também pede puniões mais rígidas contra delitos sexuais. A acusação de agressões na rede sob o artigo pornográfico é problemática, diz, acrescentando: “Pois se você trata o assédio como pornografia, o desequilíbrio de poder permanece invisível. Com isto também se mantêm a misoginia e o sexismo invisíveis e, portanto, aceitáveis”. Para Kaiser, os dickpics dizem respeito ao poder e a violência feita aos outros. “As consequências de trivializá-la são fatais.”
Os estudiosos agora fazem distinção entre violência sexual e violência sexualizada. O último não se trata de desejo, pois a sexualidade é usada apenas para humilhar a outra pessoa e demonstrar poder e superioridade. Essas agressões variam de aforismos lascivos a solicitações de atos sexuais.
Além disso, os remetentes de dickpics não são a priori pessoas sexualmente frustradas ou exibicionistas, mas frequentemente homens com um problema de masculinidade, como Barbara Krahe, professora de psicologia social, explicou em uma entrevista à revista SpiegelLink externo. “Eles querem se certificar de sua masculinidade e depois provar isso às mulheres. Eles sentem a necessidade de exercer o poder.” A mensagem que eles querem passar é: “Eu sou um homem de verdade porque sou eu quem decido onde estão os limites – e eu os ultrapasso, deliberadamente. Simplesmente porque eu posso.”
A extensão das agressões contra as mulheres – especialmente quando elas estão sob observação do público – foi implacavelmente exposta em um vídeo de 15 minutos exibido pelo canal privado alemão Pro7: o filme, no qual mulheres relataram agressões sexuais on-line, gerou milhões de cliques e milhares de comentários em um curto espaço de tempo.
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Dickpics são um meio para atingir um fim
Outra razão pela qual o envio de fotos de pênis não deve mais ser punido apenas sob o artigo pornográfico, segundo Kaiser, é o fato de que essas imagens são frequentemente usadas como uma ferramenta de intimidação contra as mulheres em cargos públicos.
Para Kaiser, os assédios digitais muitas vezes têm o objetivo de deixar claro às mulheres que elas não devem ser autorizadas a ocupar cargos políticos ou públicos. Isto se deve ao fato de que estes postos se estabeleceram em um domínio masculino, e os homens estão reivindicando algo que eles acham que as mulheres não têm direito. O envio de fotos de pênis é um mecanismo relativamente eficaz, diz ela. “Os dickpics são destinados a demonstrar às mulheres que elas devem sair novamente deste domínio masculino da esfera pública e se limitar à esfera doméstica.” O símbolo fálico é historicamente carregado de poder e de dominação. “O pênis representa socialmente uma função de poder e contém um componente ameaçador.” Ao enviar fotos de pênis, a ameaça de estupro e assédio sexual sempre ressoa, diz Kaiser.
Essa é outra razão pela qual Kaiser quer que o crime de assédio sexual seja renomeado como “agressão sexual”. Só então ficaria claro que foi violência e não uma ofensa trivial.
Fatos e números
De acordo com uma pesquisaLink externo do instituto Gfs.bern, existem formas específicas de assédio às quais as mulheres mais jovens estão particularmente expostas; estas têm referências diretas ou indiretas a comportamentos inadequados nos novos meios de comunicação. 61% das mulheres entre 16 e 39 anos de idade têm sido alvo de comentários intrusivos sobre a aparência física. Além disso, 52% das mulheres desta faixa etária mais jovem pesquisada receberam mensagens sexualmente explícitas indesejadas em canais on-line – entre as que tinham 29 anos ou menos, o número chegou a 57%.
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Tendência internacional: sexo não consentido é estupro
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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