Quando preferimos um psicólogo que fale a nossa língua
A Associação de Apoio à Comunidade Portuguesa oferece consultas de psicologia em português, em Montreux, além de ajudar os sócios a encontrar profissionais de saúde lusófonos.
Quando o psicólogo anunciou que a filha tinha Transtorno de Déficit de Atenção/HiperatividadeLink externo (TDAH) e que a menina teria de ser medicada, Sofia M. soube logo que teria de procurar um profissional de saúde que falasse português. Sofia não só discordava do diagnóstico como também não desejava dar fármacos a uma criança de “apenas de sete anos”. “O psicólogo falava alemão e a minha filha tem uma certa dificuldade com a língua”, explicou à swissinfo.ch esta portuguesa de 39 anos, residente na cidade de Thun, cantão de Berna. Para ouvir uma segunda opinião, Sofia recorreu à Associação de Apoio à Comunidade PortuguesaLink externo (AACP), com sede em Clarens, Montreux, que oferece serviço de apoio psicológico em língua portuguesa.
“A empatia entre a psicóloga da AACP e a minha filha foi quase imediata. Ela percebe o português e isso fez toda a diferença na relação entre as duas. Quando a minha filha gosta da pessoa com que está a lidar, só não move céus e terra se não puder”, explica Sofia. Até ao início da quarentena para deter a COVID-19, a família percorria cerca de 250 quilómetros todas as semanas para que a criança pudesse ir à psicóloga. Sofia está satisfeita com o acompanhamento e acredita que as consultas em português valem o esforço da família.
Casos como este ilustram como a experiência do paciente depende, dentre outros fatores, da qualidade da comunicação com os profissionais de saúde. Para dar resposta a situações em que a língua ou a cultura constituí um obstáculo, a AACP dispõe desde o verão de 2019 consultas de apoio psicológico a crianças, adolescentes e adultos. Durante o período de quarentena, a associação encerrou os serviços presenciais, mas mantém o atendimento virtual por Skype ou WhatsApp.
Nuno dos Santos, presidente da AACP, explica que a barreira da língua é uma das principais dificuldades da comunidade portuguesa na Suíça. “Quando uma pessoa não consegue exprimir na língua do outro aquilo que sente ou vive, ela vai falar o mínimo possível quando estiver numa consulta”, explica o responsável.
Foi o que aconteceu por exemplo com Céu Messias, de 59 anos, cujo marido teve um acidente grave de trabalho em 2016. Céu contou à swissinfo.ch que o marido, que trabalhava nas obras, nunca chegou a aprender o francês. Quando sofreu uma queda e foi internado em estado grave nos Hospitais Universitários de GenebraLink externo, “a gente tentava falar com os médicos e não conseguia”. Não fosse a ajuda de uma sobrinha, a comunicação “teria sido muito difícil”. Mais tarde, quando começou a receber documentos e mais documentos em francês na caixa do correio, teve de recorrer a Nuno dos Santos e da AACP para conseguir tratar todas as burocracias necessárias.
Situações de violência doméstica
O cenário torna-se ainda mais complexo quando a experiência do paciente envolve sentimentos de medo ou vergonha. Segundo Nuno dos Santos, as situações que chegam com maior frequência à associação não são como as das famílias de Sofia e Céu, mas sim casos de violência doméstica. “Ao longo dos oito anos de trabalho desta associação, nunca tinha sido tão grande a procura de ajuda por mulheres em situação de violência doméstica”, afirma Nuno dos Santos. No ano passado, segundo a mesma fonte, quatro situações foram sinalizadas, sendo que duas delas atualmente tramitam em tribunal.
“Quando a pessoa toma finalmente coragem de denunciar, ela não o vai fazer se tiver de se esforçar muito para comunicar. A pessoa precisa sentir-se em casa. E a casa é muitas vezes poder falar a própria língua. A violência doméstica ainda gera muita vergonha, então as pessoas vão guardando, guardando. É esta dificuldade em procurar apoio que as autoridades suíças têm de compreender quando se trata de comunidades imigrantes”, afirma Nuno dos Santos.
A AACP também recebe pedidos de indicação de profissionais de saúde na Suíça que falem português. Nestas situações, a equipe da AACP recorre à sua rede de contatos, que inclui a LusoSantéLink externo, uma associação criada em 2015 que reúne profissionais de saúde lusófonos que trabalham na parte francófona da Suíça. Assim, caso a caso, vão tentando pôr membros da comunidade em contacto com médicos, psicólogos e enfermeiros que não só falam a mesma língua, mas também partilham valores culturais semelhantes.
As relações entre migração e cuidados de saúde são estudadas há vários anos e a literatura científica aponta para um consenso: a barreira da língua pode resultar numa insatisfação bilateral na relação entre paciente e profissional de saúde, podendo levar mesmo a erros médicos. Mas importa lembrar que quando falamos de imigrantes, não podemos pensar num bloco homogêneo e monolítico. Imigrantes diferem não só na forma como dominam (ou não) a língua do país de acolhimento, mas também em termos de valores culturais, estatuto socioeconômico e percurso de vida.
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“Estas diferenças podem contribuir para dificuldades de comunicação com consequências importantes para os cuidados de saúde prestados”, refere um documento elaborado em 2019 pela antropóloga médica Patricia Hudelson para os Hospitais Universitários de Genebra. Intitulado “Comunicar com pacientes de língua estrangeirLink externoa”, o documento recorda como os estudos existentes sugerem que, em comparação às pessoas que dominam a língua local, os pacientes de língua estrangeira tendem a ser hospitalizados com maior frequência e com tempos de internamento mais longos, receber menos analgésicos em caso de dor, ter uma menor compreensão dos tratamentos a que estão a ser submetidos e possuir um risco maior de serem vítimas de erros médicos.
Sofia M. não pode garantir que o primeiro diagnóstico dado à filha foi um erro, mas a mãe quis exercer o direito que todo o paciente tem de ouvir uma segunda opinião – neste caso, na língua materna. A menina cresceu na Suíça, mas sempre rodeada por amigos portugueses. Já no jardim de infância, suscitava queixas da educadora, que vivia a dizer que a menina era irrequieta e não fazia o que lhe mandavam. “Foi sempre difícil para a minha filha compreender por que a professora só falava alemão”, diz Sofia, que acredita que a menina “nasceu no tempo errado, quando uma criança que tem muita gasolina para queimar é vista como um problema”. Para já, a menina ainda não tem diagnóstico fechado, mas a mãe garante que já está a ver vários progressos. “Encontrar uma psicóloga que fale a nossa língua muda tudo”, garante.
Integração
A Associação de Apoio à Comunidade PortuguesaLink externo foi criada no dia 11 de junho de 2011 com a missão de informar, ajudar e orientar imigrantes portugueses a integrarem-se na Suíça.
Reúne hoje 215 sócios. “A nossa associação tem um modelo único porque oferecemos um contacto personalizado com o cidadão e porque conseguimos concentrar no mesmo espaço serviços sociais e clínicos”, diz Nuno dos Santos, presidente da AACP e deputado municipal em Vevey.
Entre os serviços prestados a “preços simbólicos” estão não só as consultas de psicologia em língua portuguesa, mas também o apoio à tradução e preenchimento de documentos, o auxílio à inserção profissional (reformulação de currículo, escrita de carta de motivação e preparação para entrevistas de emprego) e a representação de portugueses em tribunais (atribuição de pensões de invalidez, processos de expulsão do país ou apoio a cidadãos presos, por exemplo). Sócios desempregados ou muito desfavorecidos economicamente podem ser isentos de pagamento.
A associação conta atualmente com o apoio de uma psicóloga, dois juristas e uma advogada. “Estes profissionais colaboram na maior parte das vezes em regime de voluntariado, porque querem genuinamente ajudar a comunidade. A nossa associação gostaria de remunerá-los, mas para isso precisa contar com o apoio do Governo de Portugal, que até agora está de costas voltadas para nós”, afirma Nuno dos Santos à swissinfo.ch.
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