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Quando maridos escravizam suas esposas

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A organização Projeto Resgate resgata e ajuda vítimas de tráfico de seres humanos​​​​​​​ Projeto Resgate

Wanessa Ferreira da Silva é uma carioca de 36 anos vítima de uma das piores facetas do tráfico de seres humanos. Tornou-se escrava do marido.

Mesmo tendo se casado de papel passado com um suíço em 2016, Wanessa precisou trabalhar por dois meses como prostituta para poder se bancar na casa do cônjuge.

Ela apanhou, foi explorada sexualmente e ainda teve seu passaporte retido pelo próprio marido por não pagar sua estada e plano de saúde. Teve ainda acesso restrito à casa onde deveria morar com a família do marido. Por ser obrigada a viver no porão, passou frio. Tinha que dormir de bota, gorro e casaco para se proteger das baixas temperaturas que esse tipo de cômodo tem.

Não podia tomar banho todos os dias, somente três vezes por semana, para não gastar água. Tinha que fazer suas necessidades fisiológicas em um balde.

Suas refeições eram limitadas: de proteína, só tinha direito a quatro ovos por semana e a queijo. Foi humilhada perante aos conhecidos do marido e ainda tratada de forma racista. Era aconselhada a não falar com ninguém porque ele dizia que os suíços têm medo de gente negra.

Tráfico de seres humanos e violência na Suíça

Os baixos índices de criminalidade e a qualidade de vida fazem da Suíça um paraíso no crime de tráfico de seres humanos. O Departamento de Estatística Suíça (Bundesamt für Statistik, em alemão), relata 22 casos de tráfico de seres humanos em 2016. Mas o Pastor Vicente Medeiros é categórico: esse número é somente a ponta de um problema muito maior. “A maioria das vítimas não dá parte. Elas têm medo de vingança, já que a rede de contatos conhece os familiares”, explica.

Tráfico de seres humanos

Wanessa foi socorrida pelo Projeto ResgateLink externo, organização sem fins lucrativos em Zurique, que resgata e ajuda vítimas de tráfico de seres humanos. Foi também atendida pela advogada Fernanda Pontes Clavadetscher, presidente e coordenadora da Associação Saber Direito, outro projeto de cunho social que presta consultoria jurídica à população de língua portuguesa na Suíça.

Para o coordenador e criador do Projeto Resgate, Vicente Medeiros, o caso de Wanessa é emblemático: é o mais triste dos tipos de tráfico de seres humanos.

“Não se trata de um cidadão que veio trabalhar como garçom e foi enganado, o que já é horrível. É sobre uma pessoa que quis juntar sua alma com a de outra, que foi enganada pelo marido. Essa faceta do crime debocha do sentimento, da esperança, do amor e se utiliza da vulnerabilidade social, de gênero e da migração. Esse homem jamais faria isso com uma mulher suíça, que conhece seus direitos e fala a língua local. Mas ele vai onde há espaço para isso, em países pobres, onde as mulheres têm sonhos simples e podem ser mais facilmente enganadas”, explica Vicente Medeiros.

A advogada do Saber Direito explica que, pelo relato de Wanessa, é possível verificar que ela tenha sofrido crimes como os de coação, cárcere privado, maus tratos, agressão física e violência psicológica, além de racismo e escravidão.

No que consiste o crime

De acordo com a Lei, o tráfico de seres humanos consiste no ato de transferir, alojar, raptar ou coagir através da força pessoas de uma localidade para outra podendo ser dentro ou fora do país, de maneira legal ou ilegal, voluntariamente ou não. A finalidade é para exploração do trabalho, seja a serviço de redes internacionais de exploração sexual, da mão de obra escrava ou remoção de órgãos. Dessa forma, entende-se que Wanessa também possa ser enquadrada como vítima de tráfico de seres humanos.

A swissinfo.ch conversou com Wanessa na sede do Projeto Resgate, em Zurique, em uma segunda-feira à noite. No dia do encontro, ela estava bem de saúde, mas mostrava sinais claros de ansiedade: queria fumar, esfregava as mãos, alternava reclamações de que não conseguia dormir com culpa por ter caído no conto do príncipe encantado. Nove dias depois, Wanessa conseguiu embarcar, com a ajuda do Consulado Brasileiro de Zurique e do Projeto Resgate, para o Brasil.

O video abaixo, realizado pela organização de resgate, mostra um depoimento real e como se inicia o processo de aliciamento e execução no tráfico de pessoas para fim de exploração sexual:

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Denúncia como arma

Ao contrário de outras vítimas, que têm medo, a carioca faz questão de dar o seu nome e mostrar o rosto: “Todo mundo tem que saber o que esse homem fez. Ele já me disse que irá arrumar outra para colocar no meu lugar; se não for na Índia, será no Brasil de novo. Algo precisa ser feito para deter esse psicopata”, diz.

De acordo com Fernanda Pontes Clavadetscher, a situação é séria porque entram questões como vulnerabilidade migratória e relacionamentos abusivos. “Muitas imigrantes se sujeitam a passar por humilhações e aguentam até violência doméstica para completar os três anos de casada”, explica. “Outro fator complicador é como se comprovar a violência moral e psicológica”, complementa a advogada, que trata inúmeros casos de brasileiras e portuguesas que são abusadas pelos maridos. 

Em 11 anos, o Projeto Resgate, que tem sede em Zurique, na Suíça, já resgatou 342 brasileiros vítimas de tráfico e prostituição e mais 602 migrantes afetados por algum problema social na Europa, como fome ou falta de teto ou abuso, por exemplo.

O Projeto Resgate oferece esconderijo, tenta conseguir retorno ao Brasil e reintegrar à sociedade, oferecendo cursos profissionalizantes, atendimento psicológico, médico e legal. À frente do Projeto na Suíça, Vicente Medeiros, trabalha em conjunto com o Consulado e uma série de outros órgãos contra o tráfico de seres humanos. Sua luta é pela divulgação do perigo do crime. “Só com conhecimento podemos combatê-lo”.

O depoimento de Wanessa

O começo – “Era início de 2016, quando conheci meu marido por intermédio de uma amiga. Ela me mostrou a foto dele pelo What’s up e me interessei.

A lua de mel – Durante a troca de mensagens, ele me convidou para ir à Suíça, pagou para eu tirar meu passaporte e comprou a passagem. Ficamos juntos e foi maravilhoso. Não acreditava que um homem tão bom pudesse existir e estar sozinho. Eu, que nunca tinha sido casada, vivia um sonho: o do príncipe encantado. Eu me apaixonei. Nos casamos de papel passado em fevereiro de 2017.

A máscara cai – Aí começa a segunda fase dessa história. Tive problema com os filhos dele e por isso fui obrigada a dormir no porão. Ali, naquele cômodo escuro e frio, precisava dormir de casaco de inverno e até de bota.

Ele fazia tanta pressão para eu dar dinheiro a ele, que fui trabalhar de prostituta em um cabaré perto de casa. Ainda tinha que lavar, passar e limpar a casa para os quatro homens: ele e seus três filhos já adultos.

Medo de ser morta – Ele tomou uma atitude extrema no dia em que disse que eu deveria pagar 900 francos pelas minhas despesas com moradia no porão e plano de saúde e eu recusei. Tomou meu passaporte e disse que só me devolveria quando eu desse o dinheiro. Como eu já tinha entrado com o pedido de separação, fugi. Tive medo de ser morta.

Repulsa de si mesma – Eu não durmo direito. A única coisa que quero é voltar para o Brasil e abraçar as minhas filhas. Só depois vou conseguir dormir para recomeçar. Mas antes disso, quero que as pessoas saibam da minha história para ninguém, nunca mais, cair nesse conto”.

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