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Viagens pagas com a vida

Quantas mortes são ainda necessárias para romper o silêncio e o acumular de negligências que permite a uma prática ilegal florescer apesar de custar regularmente a vida a tanta gente? Keystone

Uma semana depois do acidente rodoviário que ceifou a vida a 12 portugueses em França, começam a esclarecer-se as causas de uma tragédia que se repete com demasiada frequência e que infelizmente é fruto de negligências a vários níveis e de uma série de infrações à lei.

As autoridades francesas instauraram um inquérito por homicídio involuntário ao condutor da carrinha, o jovem Ricardo Videira. As circunstâncias agravantes – o facto de ter colocado em risco a vida de outras pessoas e não ser titular da carta de condução profissional que a lei exige aos condutores de um veículo de transporte de passageiros – podem custar-lhe uma pena de dez anos de prisão.

O tio, proprietário da carrinha não homologada onde viajava o dobro dos passageiros que a lei permitia transportar e que já admitiu ter improvisado os lugares adicionais, tem pela frente uma perspectiva não menos pesada.

A Mercedes Sprinter que partira da comuna suíça de Romont por volta das 21h00 do dia 24, embateu violentamente contra um camião pesado por volta das 23h45, na estrada nacional 79 entre Moulins e Montbeugny, no departamento de Allier. O condutor foi o único sobrevivente. Os passageiros tinham entre os sete e 63 anos de idade, nove com domicílio em Friburgo e três em Vaud. Queriam passar as festas de Páscoa em Portugal.

Várias infrações graves

As declarações do procurador de Moulins, Pierre Gagnoud, sugerem que contribuiram para esta tragédia várias infrações graves.

A carrinha foi adaptada de forma artesanal pelo proprietário para transporte de passageiros com bancos e cadeiras desdobráveis na zona de carga. Com alguns dos passageiros muito provavelmente sentados no chão. A bagagem era transportada num atrelado.

Em França é preciso ter 21 anos para obter a carta profissional que permite conduzir uma viatura de transporte de passageiros. O condutor tem 19 anos. Muito provavelmente, adormeceu ao volante.

O tio seguia alguns quilómetros à frente, ao volante de uma segunda carrinha convertida ilegalmente, que transportava outro grupo de emigrantes portugueses residentes na Suíça. Originário de Palhais, no concelho de Trancoso, Distrito da Guarda, o pedreiro que decidiu ocupar-se do transporte ilegal de passageiros sem passar pelo Registo Comercial suíço, tinha duas carrinhas Mercedes Sprinter, uma Mercedes Vito, um atrelado para bagagens e outro maior para transporte de automóveis usados que vendia em Portugal. Alugava há cerca de três anos um apartamento em Villarsel-le-Gibloux, a uma dezena de quilómetros de Romont.

Nas mãos dos piratas, em viagens suicidas

As transportadoras licenciadas chamam-lhes “piratas”. São numerosos, um mundo paralelo, onde tudo ou quase tudo é ilegal. É possível encontrar os folhetos e cartazes que anunciam os seus serviços em quase todos os centros e associações de portugueses espalhados pela Suíça. Alguns dos que hoje são proprietários de uma frota de autocarros começaram como o pedreiro de Villarsel-le-Gibloux, com carrinhas sem homologação, sem cumprir as condições de segurança indispensáveis, sem pagar impostos ou alvarás.

“É um negócio criminoso que há muito tempo denunciamos ao Ministério dos Transportes suíço”, disse para swissinfo.ch José Lanzana, diretor da Eggmann-Frey SA, a empresa que representa as transportadoras Eurolines e Alsa na Suíça. “Muitas vezes são pessoas que têm outro trabalho durante a semana e na sexta-feira se metem à estrada, no sábado chegam a Portugal e dão meia-volta para estarem no trabalho na segunda-feira”, frisou ainda.

De acordo com o responsável da Eurolines Suíça, existe uma lacuna importante na legislação da União Europeia: enquanto na Suíça a lei exige que uma carrinha de nove lugares afeta ao transporte rodoviário de passageiros ou de mercadorias, seja equipada com um tacógrafo digital (um aparelho que regista as horas de condução e de repouso dos motoristas), as carrinhas com matrículas da União Europeia não são submetidas a esta medida de controlo. Um vazio legal que dá espaço a muitos abusos.

Usando estas carrinhas que não precisam da autorização de transporte exigida às transportadoras que operam num regime de linha internacional regular, os piratas levam passageiros de Lausanne ou Friburgo a Viseu com um único condutor ao volante durante cerca de 1800 quilómetros.

Passageiros desprotegidos

“Contrariamente ao que se pensa, estes serviços piratas nem sequer oferecem preços muito inferiores aos que são praticados pelas empresas licenciadas, por vezes até são superiores, entre 150 e 200 euros”, ressalvou José Lanzana. Os passageiros são aliciados por viagens mais rápidas, sem as paragens a que a lei obriga, e pelo “porta a porta”, pois o pirata leva-os da morada de origem ao endereço de destino.

“Nós precisamos de três motoristas para fazer uma viagem de Genebra ao Porto: dois que se revezam na condução de quatro em quatro horas até Burgos, com uma paragem de 45 minutos depois de um ciclo de oito horas, e um terceiro que conduz de Burgos até ao Porto”, explicou o responsável da Eurolines Suíça.

O passageiro poupa umas quatro ou cinco horas de viagem e leva mais bagagem e o transportador ilegal mete ao bolso a totalidade do preço cobrado, pois não paga impostos nem todos os restantes encargos que pesam sobre as empresas licenciadas. Em caso de acidente, os passageiros estão inteiramente desprotegidos, pois quando se descobre que o veículo não estava homologado as seguradoras não assumem indemnizações para com o condutor nem para com os passageiros.

Segundo o diretor da Eggmann-Frey, para poder realizar transportes internacionais regulares de passageiros entre a Suíça e Portugal a empresa paga cerca de mil euros por uma autorização que é requisitada ao Ministério dos Transportes em Portugal e que é reconhecida pelos países de trânsito – Espanha, França e Suíça, mas até entre os proprietários de autocarros que empregam motoristas profissionais há muitos que realizam viagens semanais para Portugal sem disporem da permissão legal exigida para linhas internacionais regulares de longo percurso. “Recorrem ao subterfúgio do Livro Verde, que diz respeito a transportes ocasionais de passageiros em percursos internacionais”, esclareceu, acrescentando que este procedimento permite fugir ao IVA que deveriam pagar a cada um dos países de trânsito e ao país de destino. 

Penalizados pelos preços exorbitantes da TAP

“Este acidente tem merecido mais destaque nos média portugueses, porque morreram de uma vez tantas pessoas, mas todos os anos são muitos os portugueses que perdem a vida neste tipo de transportes ilegais”, ressalva José Sebastião, secretário sindical em Genebra e membro do Conselho das Comunidades Portuguesas.

A par dos restantes factores que originaram esta tragédia, aponta para a responsabilidade da transportadora aérea nacional, que “penaliza os emigrantes com preços três vezes mais caros durante as festas de Natal e Páscoa”.

José Sebastião considera que esta tragédia poderia ter sido evitada se fosse criado um regime de subvenções que permitisse aos portugueses viajar na TAP. Sem rodeios, denuncia a “indiferença do governo português” face às dificuldades que vivem os emigrantes: “Os emigrantes não podem ser vistos apenas como vacas leiteiras que contribuem financeiramente para os cofres do Estado – os preços exorbitantes de um voo na TAP nos períodos festivos e entre Junho e Agosto tornam essa opção inacessível para uma família, as pessoas são empurradas para serviços de transporte que não oferecem garantias de segurança”.

A soma de muitas negligências

Nas associações portuguesas o problema é mais que conhecido, mas quem comenta quer ficar anónimo. Quantas mortes são ainda necessárias para romper o silêncio e o acumular de negligências que permite a uma prática ilegal florescer apesar de custar regularmente a vida a tanta gente? “Num acidente recente com vítimas mortais, a carrinha transportava uma betoneira ao lado dos passageiros”, recorda alguém. Se há um ou outro que admitem ter conduzido este tipo de viaturas piratas, apressa-se invariavelmente a acrescentar “Deixei-me disso há muito tempo”.

Fontes próximas das representações diplomáticas de Portugal salientam que o fenómeno preocupa há muito e que uma campanha de sensibilização poderia ter efeitos positivos agora que a comunidade lusa está atenta a esta enorme tragédia. Vozes nos círculos associativos são por vezes menos crédulas: “Enquanto as pessoas estiverem sob o choque, vão evitar estas carrinhas, mas assim que esquecerem voltará tudo ao mesmo”.

Resta esperar que tanto os transportadores piratas como a população de portugueses residentes na Suíça tirem uma lição deste terrível acidente: umas quantas horas a menos de viagem, uns garrafões de azeite ou uns sacos de batatas “da terra” na bagagem e um transporte até à porta de casa não são valores que mereçam arriscar a vida de passageiros e condutores. Vieram para a Suíça à procura de uma vida mais feliz e não da morte.

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