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“Abandono é a mais grave das feridas”

O personagem principal: Paul Stutzmann. Jean-Jacques Béguin

"Eu odeio o nome do meu pai" é o título do livro que conta a história de um órfão, criado em Friburgo na metade do século 20.

Essa narração desvenda uma época, onde ser filho ilegítimo era sinônimo de violência. Entrevista com a autora e jornalista da swissinfo.ch, Isabelle Eichenberger-Bourgknecht.

Paul Stutzmann, também conhecido como “Paulet”, 69 anos, empurra a porta do pequeno bar em Friburgo. Ele para, com sua silhueta frágil, no meio do estabelecimento. Ele saúda os presentes e depois enxuga os olhos, avermelhados pela emoção. Nessa quarta-feira, Paul está comovido: hoje publicam o livro que conta sua vida. A história de uma pessoa comum, mas que viveu de uma forma extraordinária.

Paul é uma pessoa de outra época, assim, encostado no bar, prolixo e misterioso ao mesmo tempo. Ele é o tipo de gente que questiona, pede explicações. Assim, para levantar o véu que cobre a existência desse vidraceiro, a jornalista Isabelle Eichenberger-Bourgknecht decide escrever um livro.

Em “Eu odeio o nome do meu pai”, Paul conta a sua própria história, com suas palavras brutas. É uma narrativa cortada por testemunhos de conhecidos e outras pessoas próximas. As imagens são do fotógrafo Jean-Jacques Béguin, que captam com fineza os contornos do “personagem” que é Paul Stutzmann.

Paul Stutzmann detesta seu nome de família. Abandonado pela sua mãe, ele não conheceu também seu pai. Mas esse o reconheceu como filho alguns anos após o nascimento, o que explica ter ganho o nome.

Criado pela avó, Paul foi colocado em um orfanato e depois levado a camponeses. E o cotidiano que já era pesado, se tornou ainda mais difícil de suportar. Mas o vidraceiro soube resistir e se reconstruir entre os destroços. Se o livro de Isabelle é uma homenagem a esse homem, ele permite também de revelar a crueza de uma época em que pobres eram colocados à parte da sociedade. E onde os órfãos eram tratados como nada, sobretudo nas instituições que mais pareciam ser “casas de correção”.

swissinfo.ch: O que encorajou você a realizar esse livro sobre Paul Stutzmann?

Isabelle Eichenberger-Bourgknecht: Sou friburguense, mas morei fora de Friburgo por 30 anos. Ao retornar, eu reencontrei a cidade, suas pessoas e seus “personagens” particulares. É preciso saber que Friburgo tem uma história especial. Historicamente, a cidade viveu uma grande pobreza, sobretudo a parte baixa dela (Basse-Ville). Com o meu trabalho de jornalista, logo que retornei, eu redescobri esse local e também as histórias de maus tratos dados às crianças e que começam a se tornar públicas nesses últimos anos.

Paul Stutzmann tem uma capacidade de resistência, uma irradiação como pessoa, como me descreveram. E ele tem uma grande qualidade: a de bem se expressar. Então realizei entrevistas, que foram depois transcritas por mim palavra por palavra. O que é interessante para as pessoas que o conhecem, é que elas o escutam quando leem o livro. Ele também é bastante fotogênico. Há três anos Jean-Jacques Béguin havia fotografado ele. E as fotos ficaram tão boas, que contribuíram à minha vontade de realizar esse livro, que acabou sendo realizado apesar de mim.

swissinfo.ch: A história mostra uma violência real contra os pobres e o terror que reinava nos orfanatos. Você conhecia essa realidade?

I. E.-B. : Estava ciente da violência, pois minha família recebeu uma dessas meninas da cidade baixa, que havia sofrido de maus tratos. Por outro lado, o que me chocou é que as pessoas pareciam considerar essa situação normal. Houve muitas vítimas. Paul Stutzmann não é o caso mais trágico. Ele tem uma resistência extraordinária e conseguiu, ao final, construir sua própria vida. Mas outros tiveram um destino mais triste.

Por outro lado, eu descobri o problema dos orfanatos e a justiça comum. As religiosas que cuidavam dessas crianças órfãs e abandonadas, em sua grande maioria, já foram muito criticadas. Era um pessoal não qualificado. Na época, as famílias eram numerosas e, entre dez filhos, havia sempre um ou dois que se tornavam padres e freiras. Mas eles não tinham as qualificações para se ocupar de crianças.

Houve casos de abusos graves. Paul Stutzmann não foi maltratado pelos religiosos, mas sim pelos camponeses onde ele foi colocado para viver. Sua história não é a pior, mas ilustra muito bem a situação socioeconômica que caracterizava o cantão de Friburgo, especialmente a parte alemã e da cidade baixa da capital Friburgo, que foi construída em torno da pobreza.

swissinfo.ch: Hoje em dia, em Friburgo, como evoluiu essa distinção socioeconômica?

I. E.-B. : Como em todas as antigas capitais, a cidade baixa foi renovada. Por exemplo, uma casa que abrigava no passado 80 crianças, hoje tem apenas um casal de aposentados. Mas ainda existe na cidade baixa ilhas de pobreza.

Hoje em dia, reconhecemos as pessoas da cidade baixa pelo seu dialeto, o “bolze”. É uma língua criada por eles para comunicar entre o alemão e o francês. Na cidade baixa, encontramos ainda antigos bares, onde as pessoas do bairro se encontravam. Mas a distinção não é mais feita nesse ponto, pois as pessoas se misturaram. Por outro lado, até os anos 1970, as pessoas da cidade alta não ousavam descer na cidade baixa. Era uma espécie de gueto, aonde as pessoas só iam para os jogos de hóquei.

swissinfo.ch: No seu livro, Paul Stutzmann é geralmente qualificado de um dos últimos “originais”. O que significa essa expressão?

I. E.-B. : Os “originais” são personagem que costumamos encontrar nos bares e que não se integram forçosamente no seu contexto. Essas pessoas são pilares dos bairros, são artesãos. Porém eles são verdadeiramente ligados ao bairro. Na época, esses lugares exerciam um papel fundamental. Mesmo os políticos iam neles e pagavam a bebida dos outros para serem eleitos. Os bares também eram importantes para os pobres, os que trabalhavam como operários e que tinham muitos filhos. Eles viam para gastar o salário na bebida.

swissinfo.ch: O que significa ter sido um filho bastardo na metade do século 20?

I. E.-B. : Na época, devido aos problemas ligados ao alcoolismo e a proibição do aborto, havia muita pobreza. E inúmeras crianças haviam sido abandonadas. A lei deixou de distinguir crianças ilegítimas das legitimas somente em 1978. Essa noção de ilegitimidade caiu para a Igreja em 1983. Essas pessoas eram ilegítimas, ou seja, eram estigmatizadas. Eles pagavam pelo erro dos seus pais.

Paul foi abandonado pela sua mãe quando ela tinha 18 anos. Depois ela teve uma menina, que foi também abandonada. Essa situação existia igualmente em outros cantões, mas aqui era mais marcante, pois as famílias eram especialmente pobres. O cantão de Friburgo tinha uma economia rural. Sua industrialização ocorreu muito tarde.

O abandono, não importa para quem for, é a mais grave das feridas. Ele (Paul) não se recuperou e precisa até hoje falar do assunto. As pessoas ficam incomodadas, pois já escutaram mil vezes as suas histórias. Através do livro, procuro fazer justiça ao Paul, pois as pessoas gostam dele, mas percebo também um certo desprezo.

Isabelle Eichenberger-Bourgknecht, Jean-Jacques Béguin, “Eu odeio o nome do meu pai”, Editora La Sarine, Friburgo, 2010.

Isabelle Eichenberger-Bourgknecht nasceu em 1953 em Friburgo.

Depois de estudar russo, com um diploma em letras na Universidade de Genebra, ela fez pesquisas para o Instituto de Altos Estudos Internacionais (HEI, na sigla em francês) em Genebra.

Em 1983 se tornou jornalista da Rádio Suíça Internacional, que se tornou anos mais tarde a plataforma multimídia swissinfo.ch

Jean-Jacques Béguin nasceu em Genebra, em 1953.

Ele começou como fotógrafo amador antes de se decidir por essa profissão em 2003.

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