Bibliotecas que falam os idiomas do mundo
Viver no exterior não significa apenas estar distante da família e amigos. Muitos migrantes sofrem com a falta de livros escritos no idioma materno. Para atender essa carência, voluntários criaram em várias partes da Suíça bibliotecas especiais. Um dos objetivos é também apoiar a integração dos migrantes no país. Reportagem swissinfo em uma biblioteca intercultural na Basileia.
O primeiro passo foi dado em Renens, uma comuna (município) vizinha à cidade de Lausanne, oeste da Suíça. Em 1988, um grupo de imigrantes e professores escolares se juntou para oferecer livros nas línguas maternas das crianças que vivem na região. A iniciativa se transformou na biblioteca “Globlivres”, que no espaço de dez anos deixou de ser mantida por voluntários para ser informatizada e contar com uma equipe de bibliotecários profissionais.
Do outro lado da Suíça, na parte germanófona, outro grupo teve a mesma ideia. Elas começaram a visitar parques públicos em Sankt Johann, tradicional bairro da Basileia, marcado pela indústria e uma grande proporção de imigrantes, para oferecer livros em vários idiomas e lançar a ideia de uma biblioteca intercultural. “A resposta foi positiva e assim decidimos criar, em 1991, com um grupo de voluntários a biblioteca Jukibu”, conta Helene Schär, presidente da Sociedade de Bibliotecas Interculturais da Suíça (Interbiblio, na sigla em alemão).
A Interbiblio foi criada dois anos depois. Atualmente a sociedade agrupa 22 bibliotecas interculturais espalhadas por várias regiões do país, em grande parte nos centros urbanos como Zurique, Genebra, Friburgo, St. Gallen ou Winterthur. O financiamento e a administração delas estão geralmente a cargo de associações locais, das quais fazem parte doadores, pais e um grande número de voluntários.
Oferta diferenciada
Porém qual a utilidade dessa oferta em cidades que já dispõem de grandes bibliotecas públicas? “Há pouco tivemos um debate sobre a questão do nosso papel em relação às bibliotecas públicas, que já recebem bastante verbas para oferecer mídias em idiomas estrangeiros através de programas como a Bibliomedia (n.r.: fundação de apoio às bibliotecas públicas). Porém elas oferecem doze idiomas, inclusive os nacionais, e não podem reagir de forma flexível, como as bibliotecas interculturais, aos novos fluxos de migração. Temos uma oferta bem diferente das bibliotecas convencionais”, defende Schär.
Jukibu é um exemplo prático. swissinfo.ch foi verificar. Às três da tarde, a biblioteca abre suas portas ao público. Em poucos minutos, entra o primeiro grupo: oito meninos e meninas com idades entre 11 e 15 anos, acompanhados por duas professoras. Eles fazem parte da classe especial de uma escola na Basileia, voltada exclusivamente para crianças migrantes recém-chegadas na Suíça e sem conhecimentos de alemão. Apesar da semana delas estar ocupada por 27 horas de curso intensivo de alemão, as professoras consideram importante sua visita à biblioteca intercultural. “Manter o contato com o idioma materno é importante até para elas poderem aprender bem o alemão”, afirma uma das professoras.
Esse contato pode até emocionar alguns migrantes. “Lembro-me de uma migrante sérvia que chorou ao ver a prateleira cheia de livros escritos em seu idioma”, lembra-se Maureen Senn-Carroll, diretora da Jukibu. A americana crescida em uma fazenda em Iowa e formada com professora de escola primária, vive há duas décadas na Basileia, onde fez também uma formação de bibliotecária.
Na direção da biblioteca desde 2005, Senn-Carroll é apoiada por vinte e cinco voluntários que ela chama de “delegados do idioma”. Eles são responsáveis pela seleção dos livros disponíveis em pouco mais de 50 línguas. No total, 23 mil mídias, entre livros, CDs, DVDs e até cassetes podem ser alugados pelos jovens e crianças que frequentam o local.
Livros em português
Maria Pereira, 50 anos, é uma portuguesa nascida em Angola e residente há mais de duas décadas em uma região próxima à Basileia. Ela trabalha como voluntária na Jukibu desde o início do projeto. “No começo ajudava a encapar os livros e organizar o empréstimo, mas depois me chamaram para cuidar dos livros em português”, conta. Graças à sua participação, ela também recebeu uma formação de bibliotecária.
Muito embora o orçamento reduzido para a compra de novas aquisições – entre quinhentos e seiscentos francos por ano – Maria tenta atender todos os interesses dos leitores. “Quando estou de férias em Portugal vou às livrarias e vejo o que tem de atual para crianças e jovens. Também faço pesquisas com a internet ou pergunto aos nossos leitores o que eles gostariam de ler”, afirma a portuguesa. A escolha das obras precisa atender determinados critérios. “O livro não pode ser de política ou ter caráter religioso, ele tem de ter o máximo de fotos se for para criança pequena e também boa caligrafia”.
Os livros em português estão divididos em duas prateleiras: uma para as obras brasileiras e a outra, as portuguesas. No alto, alguns poucos livros de autores africanos. Escritores famosos estão representados como José Saramago, Jorge Amado, Ana Maria Machado e até Malba Tahan, pseudônimo do matemático brasileiro Júlio César de Melo e Sousa, autor do clássico “O Homem que Calculava”. Porém Maria Pereira confessa que sucesso fazem as versões em português de “best-sellers” estrangeiros como Harry Potter, histórias de Walt Disney ou até “mangas” japoneses.
Biblioteca como ponto de encontro
Além do aluguel de livros em diferentes idiomas, a Jukibu organiza também eventos culturais. Um dos mais populares são as leituras de contos e histórias em diferentes idiomas. “Bibliotecas devem ser ponto de encontro e também de divulgação das diferentes culturas, sem a obrigação do consumo”, ressalta Senn-Carroll. Num dos eventos, um casal de irmãos marroquinos leu histórias em árabe e as traduziu ao alemão para crianças de outras culturas. Em 2012, 64 histórias foram lidas em 15 diferentes idiomas, um motivo de orgulho para a diretora. “Bibliotecas não podem se parecer como câmaras empoeiradas, mas sim têm de se manter como lugares vivos.”
As atividades, a administração e compra de livros tem um custo elevado. Todos os anos, a associação que mantém a biblioteca discute o orçamento. Uma grande parte do dinheiro vem de fundações criadas por grandes benfeitores da Basileia.
Questionada sobre o futuro da Jukibu e outras bibliotecas interculturais na Suíça, Helene Schär se mostra otimista. “Temos cantões na Suíça como Winterthur, cuja principal biblioteca integrava desde o início uma biblioteca intercultural. No início eram cinco idiomas e todos os ajudantes estrangeiros eram pagos. Hoje todo o trabalho feito na parte intercultural é pago e isso é magnífico.”
A revolução tecnológica vivida nos últimos anos também é uma questão discutida pelas bibliotecas interculturais. “O advindo da internet traz para elas grandes benefícios. Em primeiro lugar, você tem acesso mais fácil a informações sobre as mídias para poder encomendá-las. Também muitos migrantes utilizam a internet dentro da própria biblioteca”, explica Helene Schär, mas relativizando a importância das novas mídias. “Em todo caso, acredito que o contato com os livros ainda é muito importante para as crianças e jovens.”
A biblioteca intercultural Jukibu foi inaugurada em 1991 através de uma iniciativa de imigrantes, pais e professores de escolas no bairro de Sankt Johann na Basileia.
No início o trabalho era exclusivamente voluntário. Livros em outros idiomas além das línguas nacionais da Suíça (alemão, francês, italiano e reto-romano) eram emprestados durante o verão a pessoas interessadas.
Hoje a biblioteca dispõe de 23 mil mídias (livros, DVDs, CDs e cassetes) em 82 idiomas, voltadas para um público infanto-juvenil. A biblioteca está aberta cinco vezes por semana. Ela funciona através de uma administração profissional e 22 voluntários, responsáveis pelos catálogos nos diferentes idiomas e outros serviços.
Os idiomas mais lidos são alemão, inglês, francês, espanhol, turco e japonês.
Globlivres, a primeira biblioteca intercultural da Suíça, foi inaugurada em 1988 em Renens, cantão de Vaud (oeste). Em 1991 surgiu a Jukibu como primeira biblioteca intercultural da Basileia. Nas duas décadas seguintes foram inauguradas mais 19 delas em cidades como Zurique, Berna, Winterthur, Bellinzona, St. Gallen, Lugano ou Olten. Atualmente existem 22 bibliotecas na Suíça a funcionar através dessa proposta.
O objetivo das bibliotecas interculturais é permitir que os diferentes grupos de migrantes residentes na Suíça possam cultivar a sua própria cultura através do acesso a livros. Elas também oferecem o espaço para a realização de leituras e outras atividades culturais. Segundo os organizadores, “a valorização da cultura, sociedade e língua da população imigrante oferece-lhe um sentimento de estar em casa em um país estranho e possibilita, dessa forma, criar condições para a integração”.
A Associação das Bibliotecas Interculturais (Interbiblio) foi criada em 1993. O financiamento das suas atividades ocorre através de uma contribuição anual do Departamento Federal de Cultura (BAK) e outras instituições na Suíça.
Além de apoiar as bibliotecas interculturais, a Interbiblio realiza atividades anuais. Em 2012, ela organizou uma exposição itinerante intitulada “Escritos do mundo” em oito bibliotecas e o projeto-piloto “Ilha da escrita”.
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