Justiça na Suíça se digitaliza
A Suíça quer digitalizar sua Justiça. Porém é cautelosa: inicialmente, olha para os erros cometidos em outros países, para depois, com algum atraso, melhorar o sistema. A surpresa é que não há críticas ao projeto de modernização.
É um projeto gigantesco: todo o sistema judiciário no país deverá ser digitalizado até 2026. Os tribunais federais e cantonais, o Ministério Público nos cantões e em nível federal, assim com o sistema penitenciário, serão afetados pela reforma.
No futuro, todos os processos serão conduzidos através do computados de forma centralizada, através de um único portal: “Justitia.Swiss”. Isso significa que a comunicação entre juízes, procuradores, advogados e os diversos órgãos responsáveis pela aplicação da lei ocorrerá de forma eletrônica. Um projeto de lei deverá ser apresentado em breve, permitindo que os processos em papel, muitos pesando alguns quilos, pertencerão ao passado.
Lentidão para reformas
Outros países já digitalizaram seus sistemas de justiça há muitos anos. Em 2005 uma lei regulamentou a informatização do processo judicial no Brasil. Países europeus como Dinamarca, Alemanha e Áustria também avançaram com a digitalização dos seus sistemas.
“Somos mais lentos que outros por causa do nosso sistema de consenso”, explica o professor de direito Andreas Glaser, da Universidade de Zurique. “O governo não pode decidir pela digitalização de cima para baixo”, completa, ressaltando que o Federalismo, a forma de organização do Estado na Suíça em que existe um governo federal e regionais e uma divisão de poder entre as unidades que o formam, freia as reformas e tentativas de modernização.
Porém os especialistas consideram importante o fato de que o governo federal e as autoridades judiciais nos cantões tenham conseguido chegar a um acordo para digitalizar a Justiça helvética. Se um dos cantões tivesse negado sua participação, o projeto estaria fadado ao fracasso.
Jens Piesbergen, um dos responsáveis pelo projeto intitulado “Justitia4.0”, também admite que a Suíça precisa recuperar o tempo perdido. “Talvez isso seja uma característica da nossa mentalidade: não somos geralmente os primeiros e nem os mais rápidos”, admite. Porém ressalta que há vantagens nessa forma de lidar com as mudanças: “Assim foi possível ver como elas ocorreram em países como a Alemanha, Áustria, Dinamarca, as três repúblicas bálticas, Escócia, França, Espanha, Itália ou Liechtenstein. Aprendemos com os erros cometidos e agora tentamos evitá-los. Talvez também estejamos cometendo alguns erros. Quem sabe?”
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Consenso nas reformas
A digitalização da Justiça na Suíça não tem provocado polêmicas, ao contrário do voto eletrônico, cuja introdução foi congelada devido à problemas de segurança. O deputado-federal Franz Grüter lançou uma iniciativa popular (projeto de lei levado à plebiscito após recolhimento de assinaturas de eleitores) pedindo uma moratória para o voto eletrônico. Porém apoia a justiça digital. “O voto eletrônico e a justiça eletrônica são dois projetos completamente diferentes. Seu ponto de partida difere”, declarou.
“O voto eletrônico depende da confiança na contagem correta dos votos dados nas eleições ou plebiscitos. Se um voto não é contado, toda uma sociedade seria afetada”, justifica Grüter a diferença entre os dois projetos. O parlamentar ressalta que os requisitos de segurança para o sistema de justiça digital também são elevados. “Porém as consequências de um problema de segurança ou técnicos na digitalização de processo não seriam tão graves como no caso dos processos eleitorais.”
Glaser concorda: “O voto eletrônico afeta todos, pois tem um enorme potencial de danos: se não funciona, ele distorce as decisões tomadas na democracia. A E-Justiça trata da esfera individual”. Obviamente seria um grande problema se elementos de um processo se tornassem públicos, “mas somente indivíduos seriam afetados e estes poderiam, então, ser indenizados”. Glaser lembra que outras áreas consideradas também “sensíveis” como o e-banking ou a declaração de impostos já foram há muito digitalizadas na Suíça.
“A Justiça eletrônica também controversa para alguns especialistas”, retruca Piesbergen. “O tema ainda não foi coberto pela mídia, pois ainda estamos na fase de concepção”, lembra o chefe do projeto Justitia4.0, acrescentando que a votação eletrônica está avançada no processo de tomada de decisões e, por isso, é mais discutida. “Esperamos que a discussão sobre a digitalização da Justiça se torna mais ampla a partir do momento que o Parlamento aprovar uma lei correspondente”. O governo federal pretende levar às comissões parlamentares o projeto ainda em 2020.
Ataques de hackers e chantagem
Outra diferença da digitalização do sistema judiciário e o voto eletrônico é que não há atores anônimos: todos os partidos em um processo são conhecidos (acusados, acusadores, advogados e outros), o que facilita garantir segurança no sistema. Porém, segundo Piesbergen, há riscos: falta de energia, arquivos perdidos, ataques cibernéticos, manipulação de dados, roubo de identidade e outros problemas são possíveis de ocorrer. No ano passado, hackers conseguiram roubar dados dos computadores de um tribunal em Berlim. “A extorsão é uma ocorrência comum”, lembra o chefe de projeto. “Alguém encripta um processo e cobra Bitcoins para liberá-los.”
Os técnicos e responsáveis levam em conta essas ameaças já na fase de concepção do novo sistema judiciário e desenvolvem estratégias de defesa. “Há sempre riscos residuais, mas eles devem ser minimizados e manejáveis de tal forma que a credibilidade do sistema não seja questionada”, diz Piesbergen.
Custos ainda desconhecidos
Piesbergen não dá detalhes sobre os custos do projeto de digitalização da Justiça helvética. “Seria muitos milhões de francos e pelo menos oito anos de trabalho. Na Áustria e Alemanha a modernização do sistema teria custado pelo menos 100 milhões de euros em cada país. Na Suíça os custos seriam repartidos entre os cantões e tribunais.
Para os jornalistas, a digitalização do sistema de justiça traz vantagens: o acesso às sentenças, penas e processos seria mais fácil. E personalidades teriam mais dificuldades de se esconder no anonimato. “Os jornalistas e acadêmicos não precisam mais ir ao Ministério Público todo mês para ver a lista de processos criminais em andamento”, lembra Piesbergen. Tecnicamente as listas poderiam até ser publicadas no portal da Justiça. “Porém esse é um ponto ainda a se discutir. Afinal, a proteção de dados pessoais e a privacidade devem ainda ser respeitadas.”
Adaptação: Alexander Thoele
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