Como se comportar em um trem suíço
Suba a bordo, siga o trajeto até sua estação e desça sem ofender ninguém. Parece fácil, mas não é, foi o que me disse um guru da etiqueta de transporte enquanto viajávamos juntos de trem.
Sob o pseudônimo de “Katja Walder”, Franziska von Grünigen passou uma década escrevendo uma coluna de jornal sobre situações embaraçosas que observou como viajante na Suíça. Ela está entre os quatro milhões de pessoas que viajam em média 15 quilômetros porta-a-porta até o trabalho, sendo que destes 31% usam transporte público. Mais recentemente, ela publicou um guia de 180 páginas com ilustraçõesLink externo de Daniel Müller mostrando exemplos de pessoas que se comportam mal a bordo dos transportes públicos.
“Os problemas começam quando alguém se sente demasiado em casa”, diz ela. “Em certo sentido, o trem é uma zona híbrida entre a casa e a destinação. Isto fica claro quando pessoas fazem coisas que certamente incomodarão a alguém.
No momento em que nos encontramos na principal estação de trem de Zurique, eu já cometi algumas gafes; pelo menos aos olhos de certas pessoas. Pendurei minha jaqueta no assento em frente. Meu bolo para o café da manhã veio em um saco de papel barulhento. Até passei creme hidratante para as mãos.
“Ver alguém esfregando as mãos ou aplicando maquiagem por todo o rosto é íntimo demais. Não se tem para onde ir – você não pode escapar se estiver sentada em frente à pessoa”, aponta Grünigen. “As coisas mais nojentas são cortar unhas, tirar melecas ou fazer a higiene oral”, diz ela, citando a ocasião em que viu uma mulher tirar sua prótese dentária, remover detritos com um palito de dente e limpar os dedos no assento.
Receosos do que poderíamos encontrar, embarcamos em um trem para Winterthur, uma cidade de cerca de 110 mil habitantes a nordeste de Zurique com trens para a capital financeira suíça a cada poucos minutos. No final da manhã, passamos por muitos assentos vazios em busca de quatro assentos livres somente para nós.
“É uma regra não escrita na Suíça: não se sente com alguém se houver espaço livre em outro lugar”, diz ela enquanto nos acomodamos em nossas cadeiras. Nós vamos para a janela, nossas malas estão nos assentos do corredor ao nosso lado, nossos joelhos ficam bem próximos já que estamos de frente uma da outra. Seria correto fazer isso com um estranho?
“Não, você deve se sentar na diagonal, se o espaço permitir. Mas os assentos das janelas são muito procurados”, reconhece Grünigen. Claro que se for uma hora movimentada do dia, então cada assento vazio é válido e deve ser preenchido.
O que nos leva à próxima regra suíça: Pergunte sempre se não há problema em sentar-se.
“Para mim é uma questão de boas maneiras”, diz ela. Mas cuidado com os mal-entendidos. Em alemão, por exemplo, a pergunta a fazer é: “Este assento está livre?” e não: “Este assento está ocupado?”. Para os tímidos ou linguisticamente inseguros, Grünigen recomenda o contato visual e um simples sorriso para reconhecer a presença do outro passageiro, que poderia eventualmente dizer que seu acompanhante está no banheiro.
A Companhia Ferroviária Federal Suíça (SBBLink externo, na sigla em alemão), para quem Grünigen escreve agora um blog, concorda que pedir para se sentar é de bom tom, especialmente em trens de longa distância.
“Mas no S-Bahn (trens locais), onde muitos passageiros viajam por apenas alguns minutos, isso é um pouco menos comum hoje em dia. Em vez disso, as pessoas simplesmente se sentam”, diz o porta-voz Reto Schärli, observando que a Companhia Ferroviária Federal transporta 1,25 milhão de pessoas por dia.
“Toda a comunicação é boa”, diz Grünigen. “Por exemplo, se houver bagagem no lugar onde eu gostaria de me sentar, vou perguntar se posso ajudar a arrumá-la no compartimento acima ou mais atrás. O mesmo para os casacos. A menos que seja um trem realmente vazio, estes devem estar perto de seus donos e não drapeados sobre o assento oposto”, diz ela.
Nossa viagem dura cerca de meia hora, e a única interação que temos é com o condutor. Chegamos a Winterthur ilesos, e conseguimos desembarcar sem ter que lutar com uma multidão. Mas como qualquer veterano das horas do rush suíço sabe, muitas vezes existe uma batalha ilógica entre aqueles que tentam sair do vagão e aqueles que estão ansiosos para tomar seus lugares.
“Não faço ideia por que as pessoas não podem esperar e deixar que os outros saiam”, diz Grünigen, com os olhos abertos. “Acho que há esse medo de não conseguir um lugar – ou de não conseguir o melhor lugar”.
Em seu próprio guia de etiquetaLink externo, a operadora de bondes e ônibus da cidade de Berna, BernmobilLink externo, diz explicitamente aos passageiros quem deve se mover primeiro. “Quem desembarca tem prioridade; isso evita empurrões e a viagem pode continuar rapidamente.
No entanto, ao sair da estação, Grünigen expressa impaciência com um homem que se move lenta e hesitantemente com duas malas de rodas à reboque.
“Não gosto quando as pessoas param e bloqueiam o caminho”, observa enquanto contorna com as suas longas pernas o homem. Também é inaceitável na Suíça: estar do lado esquerdo de uma escada rolante, no caminho daqueles que gostariam de ultrapassar.
Vamos para um café, o que nos leva ao próximo item: comida e bebida. Em teoria, lanches e bebidas estão admissíveis – e certamente uma coisa boa do ponto de vista de quem vende alimentos a bordo. Mas as coisas ficam complicadas se os alimentos tiverem um cheiro forte.
“Se você aparecer com um sanduíche de atum ou um hambúrguer com batatas fritas, prepare-se para ser impopular”, diz Grünigen.
Ela não é a única que pensa assim. Os usuários do Twitter que comentaram a foto que eu publiquei na minha conta listaram cebolas fritas, bananas e até mesmo café como tendo odor demasiado forte para consumo a bordo. Outros disseram que as mesas a bordo foram projetadas para refeições.
For an upcoming story on commuter etiquette: What do you think about people eating on the tram/bus/train? #commuterlifeLink externo pic.twitter.com/ogyESivsz0Link externo
— Susan Misicka (@SMisicka) February 25, 2019Link externo
E o que diz a SBB?
“Você pode comer e beber o que quiser no trem”, diz Schärli, com a ressalva de que isso pode provocar “olhares de censura” se o cheiro for muito forte. Ele acrescenta: “O pessoal de limpeza fica grato se a embalagem for descartada nas grandes lixeiras das plataformas ferroviárias”.
A Bernmobil sugere que os passageiros “comam primeiro e depois subam a bordo”, mas não proíbe o lanche.
Quanto à comida e bebida, há também o aspecto audiovisual, aponta Grünigen. Um irritante típico nesta nação amante de laticínios que é a Suíça, é quando a colher raspa dentro de um copinho de iogurte. Ou a visão de alimentos sendo consumidos de forma desordenada, como no caso de um homem que ela viu comer salame e salmão, e cujos dedos e boca ficaram mais gordurosos a cada fatia.
A colunista também já viu pessoas tirarem de sua bagagem tigelas gigantes de salada, frascos de molho e outros acessórios – como se estivessem em casa. “É problemático se as pessoas ocupam espaço demais, especialmente se as migalhas estiverem voando por toda parte e a janela estiver sendo respingada”.
E comer no vagão silencioso? Definitivamente um tabu.
À parte os ruídos de mordidas, de crocantes e de líquidos sendo engolidos, o ruído é outra causa altamente subjetiva de olhares irritados, e não apenas na zona silenciosa do trem.
“Você tem que partir do pressuposto de que as pessoas estão ouvindo; queiram ou não”, diz Grünigen sobre pessoas ao telefone, citando aquelas que agem como importantes ou indiscretas como sendo particularmente irritantes.
Como recomenda a Bernmobil, “As chamadas telefônicas nos bondinhos ou nos ônibus devem ser feitas o mais silenciosamente possível, ou simplesmente não devem ser feitas, para que a vida privada permaneça privada”.
Grünigen também está perplexa com o aumento do número de pessoas que assistem vídeos e ouvem música sem fones de ouvido. “Tenho visto isso em todas as gerações. Talvez o telefone seja um substituto para um acompanhante humano?”
A nova geração de trens a ser usada na Suíça provavelmente trará um aumento no uso de aparelhos eletrônicos pessoais. “Esses trens terão tomadas adicionais para operar ou carregar equipamentos eletrônicos. E, em alguns casos, será possível carregar telefones celulares nas mesas”, diz o porta-voz da SBB, Schärli.
Quanto às crianças barulhentas, Grünigen diz que os pais devem manter os outros passageiros em mente.
“Pegar o trem deve ser divertido”, diz a mãe de duas crianças em idade pré-escolar que tenta encontrar assentos no vagão dedicado a famílias, e sempre traz livros. “Como mãe, você tem que ter uma noção de quanto barulho é aceitável”.
Chegamos então a um assunto que é muito debatido entre os viajantes: pés nos assentos. Esse instantâneo que publiquei no Twitter dividiu opiniões, com reações que variam de “é normal” a “isso é meio nojento”.
Problematic, or perfectly OK? I'm curious how your opinions differ from that of a passenger etiquette expert. #commuterlifeLink externo pic.twitter.com/sLgHbz9NQ7Link externo
— Susan Misicka (@SMisicka) March 20, 2019Link externo
“Apoiar os pés com meias sobre o estofado é aceitável, ou com sapatos em um jornal”, desde que haja espaço. “O que não fica bem são pés fedorentos, pés depois de uma caminhada, ou pés descalços e descuidados.” No entanto, ela própria não chamaria a atenção de ninguém. “Há sempre alguém que vai dizer alguma coisa – normalmente um cidadão idoso.”
A SBB tem uma política de tolerância zero à sujeira. “Quem sujar os estofos com os sapatos tem de pagar um suplemento”, diz Schärli.
Grünigen gosta de colocar seus pés limpos, bem-cuidados e descalços nos assentos, o que, devo confessar, me espanta. Com as sobrancelhas elevadas de espanto, conto a ela sobre um homem estranho que – depois de me pedir para guardar a pasta enquanto estava no banheiro – trocou de lugar para se aproximar. Então ele tirou os sapatos, colocou os pés de meias no banco ao meu lado e pôs o casaco sobre as pernas.
Grünigen levantou também as sobrancelhas e perguntou-me: “O que você fez?”
Eu disse a ele: “Ah não! Não me sinto confortável com isso” e ele voltou para o seu lugar anterior. Ela meneia a cabeça em aprovação.
“Eu tenho coragem civil. Eu não vou hesitar em dizer algo se houver um problema, como alguém fazendo comentários racistas sobre um passageiro. Mas houve situações em que foi desconfortável”, diz ela, observando que a polícia ferroviária deve ser chamada se houver algum problema.
O que ela gostaria de ver é mais comunicação entre os passageiros, acrescentando que um vagão especial para pessoas abertas à conversa seria uma boa ideia.
“Existem tantas pessoas solteiras. O tempo no trem é uma chance e deveria ser usado para flertar, não apenas olhar no smartphone”.
Adaptação: DvSperling
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