Nova lei eleitoral francesa reaviva antigos conflitos na Nova Caledônia
O linguista francês Jean Rohleder teve que interromper seu trabalho na Nova Caledônia devido aos protestos violentos da população. Ele explica o motivo da revolta.
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Jean Rohleder já estava a caminho da Nova Caledônia quando os protestos começaram. Ele queria voltar à Nova Caledônia, pois já havia passado um ano lá estudando a língua indígena de um grupo étnico. No entanto, ele teve que desviar para a capital australiana – Canberra – e conseguiu encontrar uma acomodação de curto prazo em uma universidade de lá, pois o aeroporto de Nouméa, a capital da ilha, estava fechado.
O que está acontecendo nessa ilha tropical do Pacífico Sul, do outro lado da Austrália? Afinal de contas, o presidente francês Emmanuel Macron teve que se apressar para lá em maio, e viajou 16 mil quilômetros para passar apenas 24 horasLink externo em Nova Caledônia. A viagem foi marcada por protestos violentos em torno da capital Nouméa.
Jean Rohleder faz o pós-doutorado no LACITOLink externo, um instituto do Centro Nacional de Pesquisa Científica em Paris. Atualmente estuda Nemi e Paicî, duas línguas faladas no norte da Nova Caledônia. “Há muitos textos sobre as duas línguas, mas para esclarecer questões detalhadas, a pesquisa de campo é indispensável”, diz.
A Nova Caledônia pertence à França e é importante para o país: a localização é vantajosa do ponto de vista geopolítico e militar, e o Estado insular também possui ricos depósitos de níquel. Barricadas bloquearam as estradas. Pessoas revoltadas atearam fogo em carros e saquearam lojas. O governo tentou recuperar o controle e declarou estado de emergência por doze dias. A visita de Macron não foi capaz de acalmar a situação, os tumultos continuam até hoje e já custaram a vida de nove pessoasLink externo.
Rohleder está acompanhando os eventos em seu destino atual por meio da plataforma pública de notícias La 1ère Nouvelle CalédonieLink externo. Ele vê fotos de barricadas nas ruas e lojas incendiadas, e lê manchetes como “Crise em Nouvelle-Calédonie”.
Mas, para o francês, isso não conta toda a história. “Eles retratam a história como um motim de jovens bêbados”, diz ele ao telefone, da Austrália. “Não vi nenhuma reportagem no La 1ère que tenha analisado o contexto real.”
Indígenas contra o direito de voto
Os protestos violentos na Nova Caledônia foram desencadeados por uma reforma legislativa na França. Todas as pessoas que moram no país a mais de dez anos devem agora ter o direito de votar. O que parece ser uma questão naturalmente democrática causou alvoroço na população indígena Kanak.
Eles temem se tornar uma minoria ainda maior do que já são. No momento, somente as pessoas que viveram no país entre 1988 e 1998 podem votar. Os descendentes desse grupo também têm direito a voto. “Essa regra sobre a lei eleitoral faz parte do acordo que possibilitou a paz no país após as lutas pela independência em 1989”, diz Rohleder. É assim que está escrito na constituição da Nova Caledônia, e agora muitas caledônias e caledônios estão chocados com o fato de isso ter sido alterado unilateralmente pela França.
O fato de nem todos os residentes terem os mesmos direitos de voto viola os princípios democráticos da UE. Mas o povo Kanak não quer fraternité, egalité, liberté (n.t.: o lema do Estado francês: fraternidade, igualdade, liberdade). “Eles têm medo de se tornarem francesas e franceses comuns”, diz Rohleder. No momento, eles ainda têm direitos especiais. Por exemplo, a “terre coutumière”: a terra composta de reservas e restituição de terras, que não pode ser vendida nem doada. Ela pertence aos clãs coletivamente, que podem se desenvolver ali sem restrições e levar uma vida tradicional.
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Direitos especiais
No momento, elas ainda têm direitos especiais. Por exemplo, a “terre coutumière”, terra que consiste em reservas e restituição de terras, não pode ser vendida nem doada. Ela pertence aos clãs coletivamente, que podem construir ali sem restrições e levar uma vida tradicional.
Mas, em termos de números, eles são minoria. 40% da população da Nova Caledônia é de etnia Kanak. “Eles não se importam que venham novas pessoas”, diz Rohleder. “Mas eles exigem regras.” O problema deles são as grandes proprietárias e proprietários de terras franceses que comprometem o abastecimento de outros com seu alto consumo de água, destroem o solo com seus grandes rebanhos de gado e pioram as chances dos Kanaks no mercado de trabalho e de moradia.
Outra questão são as francesas e franceses que se mudam para a Nova Caledônia por causa do calor e das aventuras de mergulho, mas mal saem da capital e não se envolvem com a cultura caledoniana.
Mas o clima na ilha não mudou apenas por causa da reforma. Ela foi a faísca que acendeu a raiva do povo Kanak. O Estado insular já fez três referendos, pelos quais duramente lutaram, para votar pela independência da França. Por duas vezes, o referendo não alcançou a maioria.
Na terceira data, em dezembro de 2021, os lealistas venceram de forma esmagadora; os separatistas boicotaram a votação. A população indígena havia lamentado muitas mortes durante a pandemia do coronavírus, e pediu que a data fosse adiada durante o período de luto. Mas a França não cedeu.
Lutas pela independência nos anos 1980
Mesmo antes desses referendos havia frequentemente violência na Nova Caledônia quando a população indígena mostrava resistência ao racismo cotidiano, à exploração e ao roubo de terras. “O povo Kanak conquistou muito na década de 1980”, diz Jean Rohleder. Mesmo assim, eles montaram barricadas, atacaram a polícia, e lutaram com sucesso por seus direitos. “No entanto, também houve negociações constantes: a violência não foi sempre a primeira solução.”
É por isso que a maioria das Kanaks e dos Kanaks mais velhos hoje acha difícil condenar os tumultos, mesmo que eles próprios não usem de violência. Da mesma forma que a maioria das pessoas na Nova Caledônia. As “hordas de saqueadores” são um grupo muito pequeno, relataLink externo uma jornalista.
Isso ocorre principalmente nos arredores da capital, Nouméa. Muitos jovens de lá estavam ansiosos por uma oportunidade de provar seu valor, diz Rohleder. Assim como as Kanaks e os Kanaks que os antecederam nas lutas pela independência na década de 1980 e durante as revoltas de 1878 e 1917, as jovens e os jovens Kanaks possuem machadinhas, sabem atirar e são bem organizados.
E eles estão furiosos com a França, que matou milhares de indígenas e lhes negou o direito de votar até 1952, bem como direito de ir à escola até 1957. Ainda hoje, eles sentem a diferença entre indígenas e as colonas e colonos brancos: “Embora sejam cidadãs e cidadãos franceses, eles não têm as mesmas oportunidades de desenvolvimento que aqueles que cresceram em famílias brancas.” Desta forma são feitas economias nos bairros mais pobres e os clubes de jovens, e instituições semelhantes estão sendo fechadas. Ao redor de Nouméa existem bairros de favelas onde vivem principalmente pessoas da etnia Kanak, e o racismo aberto está na ordem do dia, diz Rohleder.
Perda da cultura indígena
Durante o estado de emergência, as autoridades bloquearam o acesso à rede social Tiktok. O canal faz falta, mas a população indígena ainda tem 28 idiomas nos quais pode se comunicar sem censura. No entanto, quanto mais tempo o Estado insular faz parte da França, mais sua cultura indígena é ameaçada de extinção, deixando as pessoas com um sentimento de impotência e perda progressiva.
Rohleder viajou para a Nova Caledônia pela primeira vez em 2016. Lá, ele morou em povoados na costa nordeste e conheceu o modo de vida da população rural enquanto documentava o idioma do grupo indígena Vamale. Ele ainda mantém contato com amigas e amigos e sua antiga família anfitriã pelo Facebook e WhatsApp.
As barricadas também foram sentidas pela maioria das Kanaks e dos Kanaks. Há menos gasolina, tabaco ou gás disponíveis para cozinhar. Nos vilarejos, as pessoas estão se sustentando apenas com suas hortas e com a pesca. O fornecimento de medicamentos, como a insulina, é motivo de preocupação. Como em todo o Pacífico Sul, a taxa de diabetes em Nova Caledônia é alta. A maioria da população rural não está interessada em conflitos violentos. “Meus contatos dizem que eles permanecerão pacíficos enquanto houver discussão.” A população indígena está aberta a um novo referendo.
Quarto maior produtor de níquel do mundo
Nova Caledônia é o quarto maior produtor de níquel do mundo, mas os preços do metal caíram e a concorrência da Indonésia está ameaçando os produtores locais. A multinacional Glencore vendeu recentementeLink externo uma mina em Nova Caledônia.
Durante sua estada no país, o francês testemunhou em primeira mão a divisão entre a população branca e a indígena, e chegou a ser ameaçado. Para ele, essa é a expressão de décadas de tensão.
Implementação da reforma adiada
Como a situação na Nova Caledônia ainda não se acalmou, Jean Rohleder decidiu não viajar para lá. Na França, ele trabalhará no instituto que o enviou em missão ao Pacífico Sul e tentará novamente no outono.
Após mais de um mês de crise na Nova Caledônia, Emmanuel Macron anunciou que a implementaçãoLink externo da controversa reforma será adiada. De qualquer forma, não é realista que a lei entre em vigor no momento, já que o parlamento francês foi reeleito em 7 de julho, a 16 mil quilômetros de Noumea.
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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