“É Martelly ou senão a guerra civil no Haiti”
Após o terremoto e cólera, agora é uma crise política que mergulha o Haiti ainda mais no caos. Os partidários do candidato eliminado, o popular Michel Martelly, estão furiosos.
Já os expatriados suíços estão fugindo em direção à vizinha República Dominicana. Uma reportagem swissinfo.ch/Liberté.
Charles foi forçado ao desemprego. Ele é um pintor de aproximadamente quarenta anos, que está perdido no meio de manifestantes que tomaram as ruas de Pétionville, um subúrbio da capital Port-au-Prince. Ele acaba de perder todos seus quadros que havia posto ao lado de um muro próximo a Praça de Saint-Pierre.
Seis meses de trabalho foram reduzidos às cinzas. Os manifestantes e as forças policiais passaram por lá. “Tudo queimou, minhas pinturas, meus tubos e meus pincéis. Eu não tenho dinheiro para comprar mais material. Mas existem outros casos mais graves”, relativiza o homem, apontando para os manifestantes que mantém a rua negra de poeira. “As pessoas estão com muita raiva, pois a eleição foi fraudada.”
O resultado é uma “farsa”
Ele e todos os partidários de Michel Martelly, candidato eliminado na quarta-feira passada no primeiro turno das presidenciais, não têm dúvidas: o resultado do escrutínio é uma “farsa” e deve ser anulado. E a recontagem dos votos dos três candidatos, que ocorre atualmente, não mudará a situação. Em todo caso, o Conselho Eleitoral Provisório (CEP), que se encarregou com observadores estrangeiros, não tem legitimidade na opinião dos manifestantes. Michel Martelly e a candidata Mirlande Manigat, que terminou vitoriosa, já repetiram no último final de semana: eles não aceitarão o resultado desse procedimento que deverá sair brevemente. Uma comissão sem precedentes na história política do país.
A recontagem freou uma tensão que subia desde a sexta-feira. Os manifestantes aproveitaram para recarregar suas baterias após três dias de revolta. Os habitantes correram aos mercados para se aprovisionar de alimentos, água, combustível e outros produtos de primeira necessidade, prevendo que a confusão pode voltar. Longas filas de espera anunciavam a reabertura pela primeira vez desde quarta-feira do comércio, banco e postos de gasolina. Mesmo as ruas da capital, enegrecidas pelos pneus queimados, foram desobstruídas.
Fogo
Assim Port-au-Prince saiu provisoriamente da sua paralisia, mesmo se o aeroporto ainda continua fechado. Mas a situação continua tensa. Ainda na noite de sábado, centenas de simpatizantes do cantor Martelly invadiram as ruas de Pétionville. Muitos observadores acreditam que o país poderá afundar ainda mais na violência após a recontagem de votos. Martelly poderia deixar a rival Jude Célestin em segundo lugar. Nesse caso, seriam seus partidários a iniciar protestos em seu favor, o candidato do poder. Eles deram um exemplo na semana passada, durante violentos confrontos com os partidários de Martelly. Sem esquecer que eles possuem armas de fogo.
Isso não é suficiente para assustar os fãs do cantor. “Se Martelly não é presidente, o Haiti vai pegar fogo”, declara Linda, uma das poucas mulheres entre os manifestantes. “Nós precisamos dele para ter comida, trabalho e escolas”. O cantor cristaliza todas as esperanças de mudança de uma população abandonada a ela mesmo, ociosa e sem emprego. Ela também está cega. “Essa população é manipulada, sobretudo pelos rumores. Ela não tem nada a perder”, observa Jean-Claude Denis, haitiano estabelecido em Nova Iorque. Os gritos dos manifestantes são testemunhos disso. “É Martelly ou nada. É Martelly ou a guerra civil”, grita Wisner, 24 anos, coberto por uma máscara e acompanhando outros jovens. “Ele é um homem bom e não um ladrão como todos os outros candidatos. Nós iremos massacrar o poder político.”
Um candidato novo
O popular “Sweet Micky” nunca esteve no poder. Para os manifestantes, trata-se de uma vantagem sua. “Ele não vem da política, ao contrário dos outros candidatos. Ele é novo, os outros são corrompidos. O presidente Préval e seus acólitos como Célestin simbolizam os males do país”, critica uma das pessoas em Pétionville. Não é de se surpreender, já que esse bairro é reduto do cantor.
Alguns são menos categóricos. Assim, Michel Losewald, que observa os jovens segurando cartazes de Martelly, nos quais é possível reconhecer sua bola a zero e as palavras “Tete calle” (cabeça de ovo). “Eles têm humor”, comenta o prefeito de Chardonnières, a oeste do país. Candidato a deputado para o partido esquerdista Veye-yo, Michel Losewald veio defender seu voto na rua, de forma pacífica. “Espero que se respeite o escrutínio popular para Martelly. É o homem que nos ajudará a sair da crise. Entenda que as pessoas não aguentam mais a sua condição de vida. Elas não estão vivendo como seres humanos, mas sim na imundice.”
Odor da miséria
Debaixo do seu nariz, duas mil vítimas do sismo de 12 de janeiro se amontoam em um conjunto de tendas no meio da Praça de Saint-Pierre. Eles saíram delas nos primeiros sinais de calmaria. As violências urbanas fazem parte do seu cotidiano. Um odor forte de pneu queimado e de dejetos paira sobre o bairro. Saint-Pierre exala a miséria do mundo.
E como se isso não bastasse, as autoridades temem uma explosão de casos de cólera. A epidemia quase foi esquecida com a agitação atual. O povo negligenciou as regras elementares de higiene ao beber e comer sem precaução. “Além disso, o bloqueio das vias de acesso dificulta o acesso aos cuidados médicos, tornando difícil o deslocamento do material, dos pacientes e do pessoal sanitário. Tivemos menos admissões em nossas clínicas”, revela François Zamparini, coordenador geral dos Médicos sem Fronteiras da Suíça no Haiti. Cerca de 220 pessoas morreram até agora.
Suíços fogem do Haiti
A crise política também teve consequências para os expatriados suíços no Haiti. A fronteira com a República Dominicana foi muito frequentada no final de semana. Inúmeros estrangeiros decidiram partir prevendo a volta da violência no início da semana, frente à contagem eleitoral. Agentes humanitários, jornalistas, pessoal das embaixadas partiram no final de semana. O aeroporto estava paralisado e muitos foram obrigados a sair do país pelas estradas, como o embaixador suíço no Haiti, Urs Berner.
E os que continuaram? Os 140 suíços que residem permanentemente no país, dos quais aproximadamente trinta atuam para ONGs, estão em segurança. “Em todo caso, não há problemas para os que se anunciaram”, assegura Urs Berner. “As pessoas sabem que têm de ficar em casa quando ocorre esse tipo de situação”. A embaixada enviou uma carta aos residentes permanentes há duas semanas para explicar o comportamento a adotar face à cólera e para aconselhá-los a tomar providências em previsão a eventuais manifestos. Para Urs Berner, “esses problemas mostram as dificuldades para avançar com a reconstrução.”
Do seu lado, o ministério suíço das Relações Exteriores não fez mais recomendações. “A situação atual em termos de segurança parece ser transitória e não requer imediatamente uma modificação desses conselhos”, declarou a porta-voz Carole Waelti. As ONGs suíças sofrem também com a situação. Os transportes de pessoal e de material são difíceis. “Tivemos de limitar os deslocamentos”, confirmou François Zamparini, da Médicos sem Fronteiras da Suíça no Haiti. “As clínicas não estão acessíveis. Nós antecipamos com antecedência o aprovisionamento.”
O Haiti é um dos países mais pobres do planeta e sua história foi marcada por uma série de catástrofes naturais. No plano político, o país viveu ditaduras e golpes de Estado nos últimos cinquenta anos.
O governo helvético, através da Direção para o Desenvolvimento e Cooperação (DDC) intensificou sua ajuda a partir de 2004. Em 2005, a DDC abriu um escritório em Port-au-Prince para executar um programa humanitário especial.
Depois do terremoto de 12 de janeiro, que provocou a morte de 250 mil pessoas e 1,5 milhões de desabrigados, a Suíça lançou uma vasta operação de urgência e enviou mais de 100 especialistas à região atingida.
Na conferência das Nações Unidas de 31 de março dedicada ao Haiti, a Suíça liberou um montante de 35,9 milhões de francos destinados à reconstrução do país até 2012. Além disso, ela perdoou 4,65 milhões de dólares da divida do Haiti frente ao Banco Mundial.
A essa soma são acrescentados 55 milhões de francos de doações recolhidas e colocadas à disposição pela Cadeia da Boa-vontade (ONG Chaîne du Bonheur) e suas organizações parceiras. Um centro de competência para a reconstrução (CCR) foi colocado à disposição pela DDC em Port-au-Prince para assegurar a coordenação e apoio aos projetos suíços.
Adaptação: Alexander Thoele
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