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“A favela é feia, mas as pessoas são bonitas”

Cotidiano violento para as mulheres nas favelas brasileiras. Keystone

Valdênia Aparecida Paulino nasceu e cresceu em uma das favelas mais violentas da periferia de São Paulo. Ao se formar em Direito, ela decidiu atuar em um grupo de defesa dos direitos humanos na sua comunidade.

Após denunciar vários crimes cometidos por policiais, ela foi ameaçada de morte e obrigada a sair do país por alguns meses. Antes de retornar ao Brasil, Valdênia encontrou swissinfo.

A entrevista estava marcada para ocorrer na seção suíça da Anistia Internacional, no centro de Berna. A ONG trouxe-a para a Europa depois que as ameaças de morte se tornaram cada vez mais insistentes e concretas, dando-lhe a impressão que seus dias já estavam contados.

Ao vê-la é difícil compreender como uma mulher tão franzina, com pouco mais de quarenta quilos e um sorriso simpático, como o de professora de maternal, possa ser ameaça a alguém. Porém, seu trabalho incomodou muitas pessoas.

Valdênia Aparecida Paulino, 41 anos, nasceu e cresceu em Sapopemba, região pobre na periferia leste de São Paulo com pouco mais de 300 mil habitantes. Assim como outras áreas desfavorecidas no Brasil, suas 32 favelas também são marcadas por problemas, como criminalidade, violência, falta de saneamento básico, ensino e trabalho. Nesse contexto, muitos jovens não têm uma perspectiva melhor de vida do que a de entrar no tráfico.

Porém, Valdênia foi uma exceção. Como criança, ela passou bastante tempo no centro eclesiástico católico do seu bairro, mantido por missionários europeus. De origem humilde, ela começou a trabalhar aos 13 anos em uma fábrica de roupas e a se engajar em projetos sociais, onde ajudava jovens prostitutas da favela.

Mais tarde, conseguiu apoio para freqüentar universidade, algo raro na sua comunidade. “Da região de Sapopemba poucas pessoas estudaram. Eu conseguia graças à ajuda de famílias européias e dos padres. Obviamente tive de trabalhar também”, conta.

Direitos humanos

Ao se tornar advogada, ela ajudou a fundar a ONG Centro de Direitos Humanos de Sapopemba. Seu objetivo era influenciar de alguma maneira a vida na comunidade. “De repente começaram a aparecer pessoas com alguma formação – era o meu caso – em uma periferia completamente abandonada e a fazer denúncias, mudando o panorama da região.”

Concretamente, a atividade de Valdênia e seu grupo é quase educativa. “Trabalhamos na formação das pessoas da favela sobre seus direitos, de como recorrer a esses direitos, e também denunciando as violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado, em particular policiais”. Com esse apoio, ela espera dar mais cidadania aos moradores. “Procuramos conscientizar essas pessoas de que elas são gente, que têm direitos e que o Estado que também é responsável por elas.”

Nas favelas de Sapopemba, assim como em outras do Brasil, o desamparo é causado pela situação econômica. “A pobreza deixa essas comunidades mais vulneráveis à violência dos traficantes, que, por conta da ausência do Estado, colocam as leis que querem”, explica.

Focalizar nas mulheres

O foco principal do trabalho de Valdênia está nas mulheres. “Afinal, no contexto de pobreza, a situação delas fica ainda mais frágil. Elas são a base da família e da comunidade. Quando a situação se complica, são as mulheres que seguram a barra.”

Em Sapopemba, a ONG atua com três advogados. Há pouco ela firmou um convênio com a Anistia Internacional, que prevê dar assistência psicológica às vítimas de violência policial e também do tráfico.

Além do trabalho de conscientização, Valdênia ressalta que seu grupo se esforça também para conquistar uma imagem diferente para as comunidades. “Existem pessoas das favelas que se juntam para alugar um quarto em um bairro de classe média para ter um endereço. Se elas procuram emprego e o empregador descobre onde elas moram, suas chances se tornam quase nulas.”

Nesse sentido, ela exige da mídia outro tipo de enfoque. “Queremos que eles mostrem algo além de sangue. Em meio a traficantes e a polícia corrupta, existem muitas iniciativas positivas que nunca são exibidas na televisão. A favela é feia, mas as pessoas são bonitas”, afirma.

Para Valdênia, a violência nas favelas não é conseqüência única do crime organizado, mas também da indústria da segurança que, em sua opinião, precisa gerar o “medo” para aumentar seus negócios. “Hoje temos mais homens na segurança privada do que na pública. E, curiosamente, muitos donos dessas empresas são ex-policiais.”

Lidar com policiais e bandidos

Durante o trabalho da ONG, Valdênia e seus colegas já sofreram várias formas de pressão. “Em 2004 tivemos escolta da Polícia Federal ao denunciar que várias meninas da comunidade haviam sido abusadas por policiais”, lembra-se.

Já lidar com criminosos que, de fato, exercem um poder paralelo nas favelas é outra questão. “O que garante a qualidade do nosso trabalho é a coerência de não se envolver com o traficante, até porque os que estão em Sapopemba não são os verdadeiros donos. Se a entidade aceita presentes no Natal ou no Dia dia das Crianças – porque traficante adora fazer festa para se dar bem com a comunidade – ela perde sua autoridade. A coerência foi o que permitiu ser respeitado pelas autoridades e também pelos criminosos. E não é fácil dizer ‘não’ para traficante.”

Porém, nos últimos anos, a situação pessoal da advogada piorou a partir de um caso particular. “Em janeiro do ano passado, uma jovem tentou vaga na escola e não conseguiu, mas, por ironia do destino, foi torturada e violentada por um policial dentro da escola. O caso ganhou repercussão e os policiais envolvidos foram afastados e estão sendo processados.”

Ameaças de morte

A pressão sobre ela aumentou. “Em razão disso sofri várias ameaças de morte. Colocaram o meu nome no jornal dizendo que eu era advogada do Primeiro Comando da Capital, o PCC, um dos grupos criminosos mais perigosos do Brasil. Tentaram seqüestrar um dos meus irmãos. Entraram várias vezes na organização para roubar documentos importantes. Pegaram jovens que participaram dos projetos sociais que oferecíamos, como cursos profissionalizantes, e os torturaram para me dar um recado.”

Questionada sobre as razões das ameaças, Valdênia vai ao ponto. “Qual é a raiva do policial? Não é tanto porque ele vai ser processado, pois ele quase tem certeza da sua impunidade. Mas tem a dinâmica: os policiais que cometem esse tipo de crime estão envolvidos com o tráfico de drogas; ele pega dinheiro de traficante. E quando é afastado dessa região, ele perde esse contato e deixa de receber do traficante. Então ele te odeia, pois ele também tem seus negócios”, analisa Valdênia.

Quando amigos policiais – “também existem os bons” – a alertaram de que sua cabeça estava a prêmio entre pessoas envolvidas nas acusações, ela achou que já havia ultrapassado a linha da sensatez. Essa impressão foi reforçada pela incapacidade do governo de garantir sua segurança. “Chegou a um ponto que algumas autoridades do Estado de São Paulo disseram acreditar no meu trabalho, mas que não podiam controlar os policiais na rua”, conta Valdênia. Assim, ela aceitou o convite da Anistia Internacional para sair do Brasil e passar seis meses na Europa em “exílio voluntário”.

Começar uma vida nova

Valdênia chegou em março deste ano à Espanha para participar de um encontro da Anistia Internacional, organizado para comemorar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nos sete diferentes países da Europa que visitou, ela teve a chance de contar um pouco da sua história. “Encontrei muita gente e participei de debates nos quais eu pude falar das nossas experiências, dificuldades e êxitos. Agora volto ao Brasil.”

E como será a nova vida? “É começar de novo. Vai ser duro, pois além de ir para um lugar diferente, em outro estado do Brasil, vou ter de me manter no anonimato, pois fiquei muito conhecida através imprensa. Terei de criar uma nova rede social”, conta, revelando também que a nova moradia será no Nordeste.

Enquanto o projeto de Sapopemba continua funcionando sem a sua ajuda, ela ainda está presa à São Paulo através de várias pendências na Justiça. “Uma forma de calar o defensor dos direitos humanos é tentar desqualificá-lo. Por isso, tenho vários inquéritos abertos: sou acusada de juntar documentos falsos em processo e em outro fui acusada por policiais de estar envolvida com o tráfico. Este último foi arquivado”, relata.

Mas os problemas não desanimam a advogada. “Eu nunca me envolvi com nada. Eu sempre mantive a minha a coerência. Mas essas são situações que sempre exigem muita energia. Irei começar a vida com uma ficha criminal bastante robusta, o que não é fácil.” Profissionalmente, a maior insegurança é ser condenada em algum dos processos, o que poderá impedí-la de advogar.

De qualquer maneira, a única certeza de Valdênia é o sentimento de que sua missão ainda não terminou. “Vou continuar trabalhando na promoção dos direitos humanos, principalmente com mulheres em regiões de favelas.”

swissinfo, Alexander Thoele

– Valdênia Paulino nasceu em 1967.

– Aos 17 anos, ela organizou uma casa para ajudar mulheres que queriam sair da prostituição.

– Ao se formar em Direito, começou a atuar como defensora de direitos humanos em Sapopemba, na periferia leste de São Paulo.

– Ameaçada nos últimos anos após várias denúncias feitas contra policiais, Valdênia foi obrigada a sair de Sapopemba e refugiar-se na Europa.

– Ao retornar para o Brasil, ela irá residir em outro estado brasileiro, mas pretende continuar o trabalho social.

A Anistia Internacional foi fundada em 28 de maio de 1961. A sua criação teve origem numa notícia publicada no jornal inglês The Observer em que era referida a prisão de dois estudantes portugueses por terem gritado “Viva a Liberdade!” na via pública.

O advogado britânico Peter Benenson lançou então um apelo no sentido de se organizar uma ajuda prática às pessoas presas devido às suas convicções políticas ou religiosas, ou em virtude de preconceitos raciais ou lingüísticos.

A Anistia Internacional tem 52 seções espalhadas pelo mundo. Nos países em que ela não está presente, os interessados podem se tornar sócios “internacionais”. A administração internacional está localizada em Londres e conta com 500 funcionários.

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