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“Meninas não trabalham com argila”

Uma idosa trabalhando com argila
As mãos de Yvonne Grieder-Veronesi não conseguem mais dar conta de tudo. Em vez de louças, ela agora molda figuras de argila, como uma série de patos corredores em tamanho real. Vera Leysinger / Swi Swissinfo.ch

A vida de Yvonne Grieder-Veronesi poderia ser contada como uma típica biografia feminina de sua geração: infância difícil, casamento precoce, seis filhos e anos dedicados a um marido distante. Em vez disso, é a história de uma mulher que, no final, encontrou uma maneira de fazer o que gosta e ama.

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Em uma casa de repouso na região do Oberland de Zurique, Yvonne Grieder-Veronesi recebe os visitantes na entrada e, em uma cadeira de rodas, os conduz agilmente pelos corredores até seu quarto – um quarto que parece um pequeno museu: obras de arte por toda parte, esculturas de cerâmica, quadros pintados por ela mesma.

É natural que existam também fotografias da família, mas o que mais chama atenção é a grande mesa de trabalho no meio do cômodo, repleta de argila, esmaltes e pincéis. “Estar cercada pela minha arte, com minha oficina aqui no meu quarto, é algo muito importante para mim”, afirma Grieder-Veronesi.

Quando ela se mudou para a casa de repouso, uma coisa era certa: “Vou levar tudo comigo! A cerâmica, a argila, isso faz parte da minha existência”. Ela é a única residente com um ateliê no quarto. “Eu nem perguntei”, diz, rindo, enquanto uma fina linha horizontal de expressão aparece acima de seus lábios.

Yvonne ri com frequência. Porém, em alguns momentos, ela abaixa a cabeça e olha para o chão, os lábios congelados em meio a um sorriso bem-humorado, enquanto seus olhos deixam entrever uma certa tristeza. É nesses momentos que o silêncio dá continuidade às histórias que as palavras deixam incompletas.

Quanto tempo ainda e para quê, afinal? Com o avançar da idade, questões fundamentais sobre a vida tornam-se mais evidentes. Em nossa série “Vida que Vale a Pena”, apresentamos pessoas que, mesmo em idade avançada, continuam encontrando significado em cada dia, compartilhando suas histórias de vida. Esta é a primeira parte.

Violência e restrições

Yvonne nasceu em Zurique. “No nono dia, minha mãe me levou para casa. No décimo dia, ela precisou ser internada com febre no hospital. Meu pai me colocou em um carrinho e me deixou na casa da irmã mais velha da minha mãe, onde cresci”, conta. Dessa forma, Yvonne foi obrigada a fazer um curso de dois anos em modista.

Na casa da família em Friesenberg, ela foi uma das cinco crianças adotadas. O dia-a-dia era marcado por violência e restrições. “Não foi uma infância feliz”, relembra.

Desde cedo, ela desejava estudar na Escola de Artes e Ofícios e trabalhar com argila. No entanto, “minha mãe adotiva disse: “Uma garota não trabalha com argila, mas com agulha e linha”.

“Sempre disse a mim mesmo que faria isso de forma diferente da que eu mesmo vivenciei.”

Yvonne Grieder-Veronesi

Aos 20 anos, ela passou um ano e meio em Genebra. Foi nesse tempo que conheceu Ruedi Grieder, que trabalhava em Nyon. Eles começaram a namorar, ficaram noivos e se casaram quando ela tinha 22 anos.

Aos 23 anos, ela deu à luz seu primeiro filho. Seguiram-se mais cinco. “Sempre quis ter uma família grande, e sempre disse: Vou fazer diferente do que vivi. Até hoje, minha família é tudo para mim”.

Yvonne tem hoje 16 netos e 9 bisnetos. O contato com eles é estreito. Há poucos meses, em seu 90º aniversário, a família inteira se reuniu para uma grande celebração com mais de 50 pessoas presentes.

Mulher olhando um álbum de fotos
Yvonne Grieder-Veronesi olhandoum álbum de fotos. Vera Leysinger / Swi Swissinfo.ch

O semblante de Yvonne se torna sério ao contar como começou a trabalhar com a cerâmica aos 39 anos. “Na época, eu estava muito mal psicologicamente”.

A relação com o marido estava profundamente abalada, e ela se sentia sufocada pela comunidade religiosa em que havia se casado, que não correspondia aos seus valores. Além disso, sua sogra a criticava quase todos os dias, questionando a maneira como educava os filhos e chegando a ameaçá-la com a possibilidade de tirá-los dela. “E meu marido sempre fazia o que ela dizia, nunca me defendia”.

Aos 39 anos, tudo se tornou excessivo e insuportável, e ela sofreu um colapso. Durante a terapia ambulatorial, um médico perguntou à nova paciente o que ela mais gostaria de fazer, se pudesse escolher livremente. E Grieder-Veronesi respondeu: “Trabalhar com argila”.

“Então, o médico trouxe argila, e eu moldei um cisne com um pescoço elegantemente curvado”, lembra ela. Naquele momento, aconteceu algo com ela: “Montei uma oficina em casa, comprei livros e, aos 45 anos, iniciei um aprendizado de dois anos com uma mestra ceramista”. Foi uma dura jornada: cinco dias por semana dedicados à cerâmica, enquanto cuidava de seis filhos e da casa. “Mas eu consegui”.

Aos 47 anos, começou a frequentar cursos noturnos na Escola de Artes e Ofícios. Com sua arte, passou a participar de mercados em toda a Suíça e, por mais de 30 anos, ensinou o ofício a outros.

Hoje, uma vez por semana, um ceramista visita o lar de idosos e dá aulas aos residentes. Ele foi aprendiz de Grieder-Veronesi muitos anos atrás e herdou dela o forno de cerâmica quando ela se mudou para o lar.

Todas as sextas-feiras, ele leva as peças acabadas para cozinhá-las e as devolve prontas. Suas criações atuais são diferentes das de antes: “Por 51 anos, fiz utensílios domésticos, e nunca me cansei disso”.

“Eu ainda consegui quebrar a xícara”

Em 16 de junho deste ano, ela estava trabalhando em uma xícara de chá quando, de repente, suas mãos não quiseram mais obedecê-la. “Parei e esperei três dias, mas só piorou. Percebi que tinha chegado ao fim”, conta. E acrescenta: “Mas ainda consegui quebrar a xícara em um acesso de raiva”.

Yvonne ri. Agora, ela trabalha mais com ferramentas e menos diretamente com os dedos, dedicando-se principalmente a esculturas. Atualmente, está criando uma série de patos-corredores em tamanho real para presentear seus filhos adultos.

Para ela, a diferença em relação a outros trabalhos manuais está no material; é o barro, a terra, que a conecta, literalmente, ao chão. Por isso, a jardinagem sempre foi importante em sua vida. Até hoje, ela é a única residente da casa de repouso que possui seu próprio canteiro elevado.

Ela geralmente trabalha em sua bancada à noite, muitas vezes até depois das 22 horas. Quando a casa está silenciosa, ela consegue se concentrar na cerâmica e encontrar paz.

Nesses momentos, gosta de ouvir música – preferencialmente clássica, mas não exclusivamente: “Pouco antes de completar 60 anos, um dos meus filhos disse: ‘Mãe, você é muito unidimensional. Que tal música folclórica?’ Experimentei e gostei. Então, pouco antes dos 60, comecei a aprender a tocar o acordeão suíço”.

Yvonne se tornou tão exímia que passou a ensinar crianças e adultos por 14 anos. “Além da cerâmica, tocar e ensinar me ajudaram a superar muitas coisas negativas”.

Uma idosa no jardim
Yvonne gosta de ficar ao ar livre e observar a natureza ou fazer jardinagem em seu canteiro elevado. Vera Leysinger / SWI swissinfo.ch

“Sempre esperei que você morresse antes de mim”.

Pouco antes do aniversário de 65 anos de Grieder-Veronesi, a família se mudou para uma fazenda em Toggenburg, porque seu marido ainda queria ter uma propriedade própria. Ela, porém, se sentiu isolada “lá em cima”, afastada e confinada. “Eu odiava estar lá”, diz.

Foi nessa época que nasceu uma série de jarros de cerâmica que ainda decoram seu quarto. Eles são envoltos por correntes, arames farpados; um deles tem um cadeado, e outro, uma chave que não se encaixa.

Quando Grieder-Veronesi tinha 73 anos, seu marido foi diagnosticado com asbestose pulmonar. Ela decide cuidar dele – não mais por amor, mas por senso de responsabilidade. “Foi difícil. Ele resistia”, conta.

Numa véspera de Natal, enquanto o estado de Ruedi Grieder piorava rapidamente, ele disse à esposa: “Sabe, eu sempre esperei que você morresse antes de mim”. Pouco tempo depois, ele faleceu em casa.

“Isso me ocupou durante anos, que tudo tenha acontecido assim”, diz Grieder-Veronesi hoje. “Sempre assumi todos os erros, por tudo”. Mais uma vez, encontrou consolo na argila. “Goethe escreveu que devemos usar as pedras colocadas em nosso caminho para construir algo belo. Então, fiz pedras de barro, 60 no total, desde bem pequenas até bem grandes”.

“Sempre procurei o defeito em mim mesmo, em tudo.”

Yvonne Grieder-Veronesi

Algumas delas decoram hoje seu quarto. Ela diz: “Foi assim que finalmente encontrei paz”.

Após a morte de seu marido, Grieder-Veronesi se mudou para a casa de repouso. Isso foi há dez anos. Foi a decisão certa, ela diz, embora tenha tido que deixar muita coisa para trás.

“Os três anos mais felizes da minha vida”

Poucos meses depois de se mudar para seu novo lar, ela encontrou um homem com um andador no corredor. “Ele era recém-chegado, veio até mim e disse: ‘Nós nos conhecemos’. Eu o olhei e respondi: ‘Sim, mas não sei de onde’”.

Era uma alma gêmea – e amor à primeira vista. Erwin Nowak tinha sido solista de contrabaixo na Ópera e no Tonhalle, e além de sua profissão, também era pintor e escultor. Eles se complementavam perfeitamente.

“Tínhamos mais de 80 anos quando ficamos noivos. Aproveitamos tanto”, diz Yvonne com um sorriso. “Foram os três anos mais felizes da minha vida”. A família dela reagiu favoravelmente, e até hoje seu filho mais velho ainda comenta sobre o quanto se fascinava com o humor de Nowak. “Eu nunca teria imaginado que me apaixonaria assim novamente na vida, mas aconteceu. Erwin era uma pessoa tão distinta, tão boa”.

Idosa em uma cadeira de rodas passeando no campo
Sua vida continua empolgante. Ela está sempre aberta a aprender algo novo. Vera Leysinger / Swi Swissinfo.ch

Ele faleceu em 2018. Grieder-Veronesi criou uma grande lápide branca para ele. Cada degrau simboliza uma etapa da vida de seu noivo. Agora, a peça ocupa um lugar de destaque em sua mesa de trabalho, no meio do cômodo.

“Perguntei por que todos me cumprimentam pelo nome”

Uma das pinturas de Erwin está pendurada na parede do quarto, retratando um vaso com flores. Ao lado, há uma grande fotografia de seu falecido marido junto a um rebanho de ovelhas, tirada no Toggenburg. Assim como quase tudo neste recinto, essas duas imagens, em sua aparente contradição, também contam a história de Grieder-Veronesi.

“Certa vez, perguntei a um dos cuidadores por que todos aqui na casa me cumprimentam pelo nome, mesmo que eu não conheça a maioria deles”, conta ela. “Depois de alguma hesitação, ele disse: ‘A senhora é conhecida por sempre fazer o que quer’”.

Ruedi Grieder está enterrado perto do lar onde Grieder-Veronesi vive, assim como Erwin Nowak. Por muito tempo, ela pensou que um dia descansaria no mesmo túmulo que seu marido, como manda a tradição. “Mas isso é apertado demais para mim. Quero que minhas cinzas, quando chegar a hora, sejam espalhadas com vista para as montanhas. Assim, me tornarei terra”.

Edição: Marc Leutenegger

Adaptação: Karleno Bocarro

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