Livro da “caçadora de cobras” Carla del Ponte gera polêmica
A cadeira de Carla del Ponte na embaixada da Suíça na Argentina balança desde a publicação de seu livro de memórias "A caça". Alguns líderes políticos suíços pedem a sua renúncia.
A Rússia quer que a apuração das acusações feitas pela ex-promotora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia seja vigiada pelo Conselho da Europa.
“Houve um tempo em que eu caçava cobras com meus irmãos.” Assim Carla del Ponte começa as suas memórias. E ela termina com uma constatação: “Ainda hoje sou mais caçadora de cobras do que jurista”.
Durante oito anos, de 1999 a 2007, Del Ponte tentou levar os maiores criminosos da guerra nos Bálcãs ao banco dos réus do Tribunal Penal Internacional (TPI) para a ex-Iugoslávia, em Haia, na Holanda.
Nessa função, segundo conta, enfrentou não só na resistência dos sérvios, croatas e albaneses do Kosovo, como também dos EUA, de governos da União Européia, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e até do Vaticano.
Em “A caça. Eu e os criminosos de guerra”, ela revela detalhes de seu trabalho no TPI e diz que esbarrou numa “parede de borracha”. A obra já causou um turbilhão antes mesmo de chegar às livrarias suíças e italianas há uma semana.
Ministério conhecia o manuscrito
O Ministério das Relações Exteriores (DFAE) proibiu Carla del Ponte de promover o livro, alegando que ele é incompatível com a atividade diplomática da atual embaixadora da Suíça na Argentina, uma função que exige “equilíbrio”.
Segundo o jornal Corriere del Ticino, Del Ponte havia apresentado o manuscrito ao ministério com um prazo para correções ou cortes. “Carla del Ponte escreveu esse livro em seu nome sobre sua atividade como promotora-chefe do TPI para a ex-Iugoslávia. Por isso, não pode ser tarefa do DFAE sugerir ou até pedir mudanças”, disse o porta-voz do ministério, Jean Philippe Jeannerat, ao jornal Tages Anzeiger.
Berna é da opinião de que algumas das acusações da autora não podem ser sustentadas pelo governo suíço, que ela agora representa em Buenos Aires. Alguns políticos suíços, como o presidente da Comissão de Política Externa do Parlamento, deputado Geri Müller (Partido Verde), pediram a renúncia de Del Ponte “por falta de imparcialidade”.
Livro explosivo
As 412 páginas do livro contêm tantas passagens provocantes que não faltaram reações. Segundo o jornal italiano La Republica, o governo sérvio protestou junto à ONU e tentou por todos os meios impedir a publicação.
Del Ponte relata detalhadamente as complicadas negociações com políticos e agentes secretos sérvios, por exemplo, para tentar prender os ex-líderes dos sérvios na Bósnia, Radovan Karadzic e Ratklo Mladic.
Uma acusação que chama ainda mais a atenção em Belgrado é a de que vários líderes dos albaneses do Kosovo, incluindo o atual primeiro-ministro, Hashim Thaci, supostamente estiveram envolvidos no tráfico de órgãos extraídos de prisioneiros sérvios.
Quase 300 prisioneiros sérvios e de outros países eslavos foram transferidos em 1999 do Kosovo para a Albânia, onde eram colocados em uma espécie de prisão para a extração dos órgãos, que teriam sido levados para o exterior, afirma o livro que Del Ponte escreveu em parceria com Chuck Sudetic, um jornalista do New York Times.
A Rússia, aliada da Sérvia, pediu nesta segunda-feira (14/04) em Estrasburgo que a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa vigie a apuração das acusações feitas por Del Ponte.
Mulher incômoda
A ex-promotora do TPI revela pontos fracos de todos os lados. “Graças ao trabalho do tribunal, nenhum grupo na ex-Iugoslávia pode se apresentar como vítima”, escreve.
Em entrevista à swissinfo antes de ser silenciada pelo DFAE, ela disse que o livro se referia à grande confiança na Justiça internacional. “Apesar de todos os obstáculos, é possível fazer justiça às vítimas dos crimes de guerra”, afirmou.
Ela admitiu que “a Justiça internacional tem seus limites, assim como também a nacional e a local. Mas o rumo enveredado está correto”. No livro ela afirma que “quem constrói paz sem justiça prepara o próximo conflito”.
Carla del Ponte também admite erros próprios. “Certamente eu poderia ter feito meu trabalho melhor”, escreve. Na caça incessante pelo mundo, ela permaneceu muito pouco em Haia, na sede do TPI. “Subestimei o que significava isso para a instituição”, diz.
Ela defende, porém, seu princípio de falar sem papas na língua. “Não preciso me desculpar pelo fato de ser resoluta e dizer o que penso.” As reações ao livro mostram que a “caçadora de cobras” mexeu num ninho de cobras.
swissinfo, Françoise Gehring (Lugano) / Geraldo Hoffmann
“A caça. Eu e os criminosos de guerra” foi publicado pela editora Feltrinelli e até o momento está disponível só em italiano (“La caccia. Io e i criminali di guerra”). Os direitos já foram vendidos em vários países.
Na obra, Carla del Ponte descreve o período em que foi promotora-chefe do Tribunal Penal Internacional em Haia.
Nessa função, ela caçou criminosos da guerra nos Bálcãs. Noventa e um dos 161 procurados foram presos ou se entregaram à Justiça.
Seu maior fracasso foi não ter conseguido prender os líderes sérvios na Bósnia, Radovan Karadzic e Ratko Mladic (Srebrenica), que continuam soltos até hoje.
O líder sérvio Slobodan Milosevic escapou da condenação por ter se suicidado na prisão durante o julgamento em Haia.
Nasceu em 1947 em Bignasco (Valle Maggia), no Tecino (região italiana no sul da Suíça).
Ela estudou Direito International em Berna, Genebra e no Reino Unido.
Em 1981, foi nomeada procudora do estado do Tecino, onde se descatou por sua atuação rigorosa contra a lavagem de dinheiro, crime organizado, tráfico de armas e criminalidade econômica transfronteiriça.
Em 1989, escapou por pouco de um atentado a bomba.
Em 1994, tornou-se procuradora geral da Federação Helvética.
Em 1999, sucedeu Louise Arbour como promotora-chefe do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugolslávia, cargo que exerceu até o final de 2007.
Desde janeiro de 2008, é embaixadora da Suíça na Argentina.
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