“Nelson Mandela é um incrível pacificador”
Militante fiel do braço armado do ANC (Congresso Nacional Africano), durante o regime de apartheid, Christopher Sokutu viveu intensamente a libertação de Nelson Mandela, em 11 de fevereiro de 1990, da tristemente célebre prisão de Robben Island.
Em entrevista à swissinfo, ele fala, 20 anos depois, sobre evento importante do século 20.
Ao norte de Port Elizabeth, o township de Zwide parece muito com os outros. Os bairros insalubres, chamados pudicamente de “assentamentos informais”, tem pequenos barracos de lata sem água encanada nem eletricidade, ruas esburacadas ao longo de vários hectares.
Um pouco mais longe reaparecem ruas de asfalto e muros de tijolos. Estamos longe do luxo da zona sul da cidade, onde a população de maioria branca se tranca em casas espaçosas, atrás de cercas elétricas, mas a casa de Cristopher Sokutu é confortável.
Na parede está a carteira partidária do pai, e o retrato do presidente Jacob Zuma estampado na camiseta do filho não deixa dúvida: o Congresso Nacional Africano (ANC) faz parte da vida da família Sokutu.
Na geração de Christopher, os cinco irmãos e irmãs estiveram envolvidos na luta contra o regime racista do apartheid. O mais conhecido, Brian, é porta-voz do partido, no poder desde as primeiras eleições livres de 1994.
Christopher, o irmão mais velho, passou mais de quatro anos na prisão Robben Island. Ele fala com saudade da época da luta armada em Port Elizabeth e tem uma visão – prudente, evidentemente, para um membro do partido no governo – da África do Sul de 2010.
swissinfo.ch: Neste mês de fevereiro, o mundo inteiro celebra os 20 anos da libertação de Nelson Mandela. Que lembranças o senhor tem desse evento histórico?
Christopher Sokutu: Foi evidentemente um momento muito importante para os sul-africanos, mas também para o mundo inteiro.
Eu me lembro primeiro do dia 2 de fevereiro de 1990, quando o presidente Frederick De Klerk anunciou que Mandela seria libertado. Ficamos tristes de saber que ainda esperaríamos alguns dias, mas a euforia era enorme dentro da prisão. Todo mundo dançava, gritava e se abraçava.
Em 11 de fevereiro, na hora da libertação de Nelson Mandela, deveríamos estar trancados em nossas celas, mas os guardas nos autorizaram excepcionalmente a acompanhar o acontecimento.
Foi a primeira vez que vi Mandela na televisão. Os mais antigos, que tinham esperado tanto tempo esse momento, não conseguiam conter suas lágrimas. A bandeira do ANC tremulava pela primeira vez em Robben Island. Nós podíamos enfim dizer que a África do Sul estava livre.
swissinfo: O que representava Nelson Mandela para o senhor?
C.S.: Quando cheguei a Robben Island, ele já havia sido transferido para a prisão de Pollsmoor. Eu o encontrei várias vezes posteriormente. Para mim, ele ficará como o homem de paz do século 20. Nosso país precisava de alguém como ele. Perseguido, preso, maltratado, ele saiu da prisão com um incrível espírito pacificador.
Insisto também em lembrar o papel essencial desempenhado pelo presidente De Klerk. Ele estava sob pressão internacional, mas muita gente nessa época ainda se opunha às mudanças. Sem ele, a África do sul talvez ainda não fosse livre hoje.
swissinfo.ch: Como o senhor foi parar na prisão de Robben Island?
C.S.: Minha família sempre militou no ANC. Eu comecei a luta política na escola obrigatória e foi recrutado pelo Umkhonto We Sizwe (MK), o braço armado do ANC, em 1979. Minha missão era encontrar lugares para depositar armas na região de Port Elizabeth.
Naquela época, a cidade era um dos bastiões principais da luta contra o apartheid. A repressão era proporcional à ameaça que representava o ANC. Os serviços de segurança eram os mais brutais do país.
Fui preso e torturado várias vezes, especialmente no último andar do Sanlam Tower, no centro da cidade, um lugar de péssima reputação. Eles me quebraram o braço esquerdo, mas muitos dos meus camaradas de luta foram mortos ali.
Em 1986, fui preso, julgado e condenado a oito anos de prisão por posse de armas e atividades terroristas. Aí fiquei um pouco mais de quatro anos em Robben Island.
swissinfo.ch: Como era a vida cotidiana na prisão?
C.S.: No fim do apartheid, as condições de vida melhoraram muito. Claro que, como em todas as prisões, havia regras a respeitar. Mas durante esses quatro anos, pude trocar ideias com os outros prisioneiros.
Em minha cela, onde éramos uns 30, inclusive o atual ministro da Justiça, eu integrei profundamente a noção de reconciliação. Compreendi que não adiantava nada alimentar rancor contra meus antigos carrascos. Era preciso deixar a cólera de lado e reunir todo mundo num mesmo projeto.
swissinfo.ch: A África do Sul de 2010 é a ideal que o senhor imaginava na cela de Robben Island?
C.S.: A situação é bem diferente de 20 anos atrás. As leis que nos impediam de ir onde desejássemos e nos misturar com os brancos felizmente não existem mais. Nós somos livres e isso é essencial.
Mas é claro que ainda existem muitos problemas. Muita gente não tem onde morar, a taxa de desemprego é muita alta. A recessão e a criminalidade afetam muita gente. Certas coisas não funcionam, mas tenho certeza que nosso governo faz tudo para remediar. A África do sul está na boa direção, mas as mudanças levam tempo.
swissinfo.ch: A África do Sul é hoje o país mais desigual do mundo. O apartheid não foi substituído por um apartheid econômico?
C.S.:Seria falso afirmar que hoje existe uma economia branca e uma economia negra. Mas ainda tem pobres demais. É absolutamente necessário reduzir o fosso entre os que sobrevivem nas favelas e os que vivem nos bairros dourados. Se pudermos reduzir as desigualdades, nosso país ficará melhor.
Mas nem tudo é negativo. Graças ao programa de discriminação positiva “Black Economic Empowerment” (BEE) e à abertura de nossa economia, muitos negros se tornaram milionários nos últimos anos.
swissinfo.ch: Justamente, o projeto econômico do ANC, socialista antes do apartheid, tornou-se muito liberal quando passou a dirigir o país. O senhor não lamenta essa reviravolta?
C.S.: Eu sou membro do ANC e se meu partido pensa que esse modelo vai ajudar as pessoas, não posso me opor. Infelizmente, a maioria dos “black Diamonds” (ndlr: os negros que enriqueceram), não distribui nada à base da população. Nossos dirigentes deveriam integrar mais pessoas que têm ideias e querem desenvolver um projeto neste país.
swissinfo.ch: Para encerrar, o que o senhor sabe das relações que a Suíça teve com a África do Sul durante os anos de apartheid?
C.S.: (Primeiro ele elogia a Suécia, cujo primeiro ministro Olof Palme foi um fervoroso opositor do regime segregacionista). Ah, a Suíça? A única coisa que sei é os seus bancos ganharam muito dinheiro durante esse período na África do Sul.
Samuel Jaberg, Port Elizabeth, swissinfo.ch
(Adaptação: Claudinê Gonçalves)
Presos políticos.Situada em uma ilha ao largo da cidade do Cabo, na prisão de Robeen Island estiveram milhares de militantes políticos do Congresso Nacional Africano (ANC) e de outros partidos (SACP, PAC, etc…) desde o início do regime de apartheid (1948) até a libertação de Nelson Mandela (1990). A prisão foi fechada definitivamente em 1991.
Nelson Mandela. As condições de detenção eram particularmente difíceis na seção de alta segurança onde esteve Nelson Mandela. Foi lá que o futuro primeiro presidente negro da África do Sul escreveu suas memórias no início dos anos 1970.
Detenção. Naquela época, Robben Island tinha 4 mil prisioneiros. Graças à mobilização de membros do ANC fora da prisão e de associações internacionais, as condições de detenção melhoraram durante o período que precedeu o fechamento da prisão.
Memória. Vinte anos depois de fechada, Robben Island é hoje um dos lugares incontornáveis de memória dos anos de apartheid visitado por turistas que vão à cidade do Cabo.
Situada na costa sul do continente africano e denominada com razão a cidade do vento, Port Elizabeth, rebatizada Nelson Mandela Bay no fim do apartheid é a quinta maior cidade do país. Ele tem 1,3 milhões de habitantes e quase 800 mil vivem em townships na zona norte, onde mestiços e negros foram instalados durante o apartheid.
Cidade portuária, ela é a capital da indústria automobilística, que emprega dezenas de milhares de pessoas. Atingida pela crise, a cidade tenta diversificar sua economia, investindo principalmente no turismo.
Ela foi um centro importante da luta contra o apartheid travada pelo ANC. Steve Biko, símbolo e mártir, foi torturado pelos serviços de segurança do regime no último andar da «Samlan Tower» de Port Elizabeth em 1977. Morreu ao ser transportado para o hospital militar de Pretória.
É uma das cidades que sediará jogos da primeira Copa do Monde de futebol em solo africaino dentro de quatro meses. A seleção suíça disputará ali seu segundo jogo da primeira fase, contra o Chile, dia 21 de junho. Um novo estádio, o Nelson Mandela Bay Stadium foi construído por um custo total de 300 milhões de francos suíços. Sua capacidade é de 46.’000 lugares.
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