Suíça: um centro insuspeito no comércio internacional de cocaína
Basileia e seus portos no rio Reno são um dos principais pontos de acesso para a cocaína que chega nos portos marítimos europeus. Mostramos o difícil trabalho dos policiais de coibir o crime.
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No Reno, não se veem barcos, apenas gaivotas enfrentam o vento gelado. Ao meio-dia, um único navio de carga aportou em Kleinhünigen – Basileia, situado na fronteira entre Alemanha e França, vindo de Roterdã com 59 contêineres. Junto aos portos de Birsfelden e Muttenz, Kleinhünigen é um dos três portos suíços no Reno, cruciais para o comércio entre Roterdã e Basileia e vitais para a transferência de mercadorias para estradas e ferrovias. Em 2023, quase cinco mil navios transportaram aproximadamente 120 mil contêineresLink externo até aqui.
Com o céu densamente nublado acima, munidos de capacetes e coletes de alta segurança, nos dirigimos ao posto alfandegário de fronteira, guiados por Ioannis, chefe da equipe de controle alfandegário de Basileia, identificado apenas pelo primeiro nome por razões de segurança. “A maioria dos contêineres já foi descarregada e está agora no cais”, informa Ioannis. Durante nossa caminhada até o terminal, dois colegas dele entraram no centro de transbordo e notificaram os operadores do porto sobre a intenção de inspecionar três contêineres específicos: dois da China e um de Taiwan.
Após um período de declínio consistente, observou-se recentemente um alarmante aumento nos crimes de homicídio na Suíça, um fenômeno não atribuído à violência doméstica, mas evidenciado, por exemplo, no caso do assassinato de um homem com ligações criminosas na Langstrasse, em Zurique. Conforme os dados estatísticos criminais de 2022Link externo do Departamento Federal de Estatística, houve um incremento de mais de 16,9% em atos graves de violência em comparação ao ano anterior, marcando o maior aumento percentual desde o início dos registros em 2009.
Embora aparentem ser casos isolados, a experiência indica que o crime organizado pode estar envolvido nesses incidentes. No entanto, identificar tal conexão demanda uma análise e trabalho investigativo extensos, conforme explica um especialista da Fedpol. Afinal, chamar atenção por meio de assassinatos é contraproducente para os negócios, até mesmo no mundo do crime.
Três mil toneladas de cocaína
O trabalho dos guardas de fronteira e agentes alfandegários é frequentemente comparado à busca por uma agulha no palheiro, devido à impossibilidade de inspecionar todos os contêineres que transitam pelos portos de Basileia. Em 2023, esses portos movimentaram entre cinco e seis milhões de toneladas de mercadorias. “Apenas uma pequena fração das importações pode ser efetivamente inspecionada”, admite Ioannis. Os controles são seletivos, com atenção especial voltada para contêineres originários da América do Sul, dada a prevalência do tráfico de cocaína.
A Europa, incluindo a Suíça, tem enfrentado um aumento no influxo de cocaína. O Relatório Europeu sobre Drogas de 2023Link externo, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, revelou que os Estados-Membros da UE apreenderam um recorde de 303 toneladas de cocaína em 2021, um aumento significativo em relação às 211 toneladas de 2020.
A maior parte do tráfico de drogas ocorre via contêineres, com o porto de Antuérpia, o terceiro maior da Europa, registrando a apreensão de 116 toneladas de cocaína no ano passado. Estima-se que apenas 10 a 20% das drogas importadas são interceptadas, sugerindo que até 3.000 toneladas de cocaína podem ter sido contrabandeadas para a Europa em 2021.
Para introduzir drogas na Europa, contrabandistas utilizam o chamado “sistema de fraude”. Essa técnica envolve a abertura ilegal de um contêiner, por exemplo, de bananas, em um porto de partida como Guayaquil, no Equador, para ocultar drogas em seu interior. Em seguida, o contêiner é fechado novamente com selos roubados ou impressos em 3D, dificultando a detecção da adulteração. Ao chegar ao porto de destino, como Roterdã, o contêiner é aberto por uma rede de cúmplices. “Geralmente, os mensageiros transportam as drogas até a Suíça por terra”, informa um especialista da Polícia Federal Suíça (Fedpol) em Zurique, destacando que grupos criminosos na Holanda mostram menor interesse em alcançar Basileia. A droga muda de mãos várias vezes ao longo da cadeia de distribuição, e, em casos de grandes carregamentos, os traficantes podem viajar em comboio para evitar a detecção.
Na Suíça, o mercado atacadista de cocaína é controlado por várias organizações criminosas, entre elas, destacam-se aquelas provenientes dos Bálcãs. A ‘Ndrangheta, com foco principal na importação de drogas para a Europa em larga escala, conduz parte de suas operações a partir deste país. Além dela, redes menores, como as turco-curdas, também estão envolvidas no tráfico de entorpecentes. Contrariando suposições anteriores, esses grupos tendem a colaborar entre si, em vez de agirem isoladamente, desafiando a antiga concepção de clãs fechados.
Diversos métodos são empregados para importar cocaína para a Suíça. Uma das técnicas envolve mensageiros que viajam de avião, engolindo até meio quilo de cocaína, enquanto outros tentam burlar os controles aeroportuários escondendo até 20 kg da droga em suas bagagens. Outra estratégia comum é o transporte terrestre, partindo dos principais portos europeus, com a droga oculta em compartimentos secretos ou outras instalações sofisticadas em veículos particulares ou caminhões. Remessas maiores são frequentemente movidas em comboios de veículos para minimizar as chances de serem interceptadas por verificações aleatórias. A importação via contêiner, embora presente, é menos comum, visto que o trajeto da Holanda para a Suíça geralmente não é submetido a rigorosas fiscalizações alfandegárias.
20 francos por uma linha de pó
Numa tarde de início de fevereiro, no porto de Kleinhünigen, os guardas fazem mais do que apenas verificar a conformidade com a legislação alimentar ou a correta declaração de mercadorias. Eles também realizam testes rápidos para detectar drogas nos contêineres. “Utilizamos bastonetes úmidos, parecidos com os usados nos testes de Covid, que são passados pelas paredes internas dos contêineres”, explica Ioannis. Um contêiner proveniente de Taiwan, aberto após o rompimento do lacre com uma tesoura por um funcionário do porto, revelou conter aspargos e brotos de bambu. Após uma inspeção minuciosa de um pacote e a ausência de detecção de drogas pelo dispositivo de teste, as escotilhas foram fechadas e lacradas novamente, permitindo que as mercadorias prosseguissem viagem.
O Depto. Federal de Alfândega e Proteção de Fronteiras revelou que apreendeu aproximadamente 1,09 tonelada de drogas em 2022, registrando um aumento significativo nas apreensões de cocaína. Do total de drogas encontradas no ano, cerca de 500 quilos foram apreendidos em uma única operação policial. Um incidente notável foi a descoberta de meia tonelada de cocaína na fábrica da Nespresso em Romont (cantão de Friburgo), escondida em um contêiner de café do Brasil. Após uma parada em Antuérpia, o contêiner seguiu de trem para o centro de logística Swissterminal em Basileia, antes de chegar à instalação da Nestlé.
Estimativas de 2018 apontam que cinco toneladas de cocaína são consumidas anualmente na Suíça, fazendo dela a segunda droga mais usada no país, após o cânhamo. Em 2022, 1% da população admitiu o uso de cocaína, refletindo sua crescente popularidade. A cocaína é consumida em diversos contextos sociais, inclusive em festivais de pequenas localidades, em parte devido à sua acessibilidade financeira: um grama custa menos de 100 francos, e uma dose (uma linha) é mais barata que um coquetel em uma boate da moda. Além disso, a pureza da droga varia entre 60% e 80%.
Suíça, centro logístico
Entre 2012 e 2022, o consumo de cocaína na Suíça mais que dobrou, conforme demonstram análisesLink externo das águas residuais realizadas pelo Instituto Federal de Pesquisa Suíço (Eawag). Uma avaliação em 2022 de cem cidades europeias colocou três cidades suíças – Zurique, Basileia e Genebra – entre as dez primeiras em consumo de cocaína, ocupando respectivamente o 5º, 6º e 8º lugares.
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“A disponibilidade de cocaína não tem precedentes”
O lucro gerado pelo comércio de cocaína na Suíça é estimado em cerca de 500 milhões de francos suíços, representando uma fonte significativa de receita para o crime organizado. “A Suíça foi vista como um refúgio seguro para a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e um dos mercados de venda mais atraentes da Europa”, afirma um especialista da Fedpol. Investigações recentes também revelaram que o país se tornou uma base para operadores significativos do tráfico internacional de drogas, indicando que grupos criminosos no país não apenas controlam a importação e distribuição de cocaína em grande escala, mas também expandem suas operações além das fronteiras suíças. A prisão de Flor Bressers, conhecido como o “Rei da Cocaína” e um dos criminosos mais procurados da Europa, em Zurique em 2022, evidencia a consideração da Suíça como um local seguro por criminosos de alto escalão.
A Fedpol destacaLink externo que o tráfico internacional de drogas constitui a atividade principal do crime organizado na Suíça, com a ‘Ndrangheta sendo um dos grupos mais ativos devido à sua rede extensa e eficiente. Este grupo importa cocaína em grande escala, utilizando para comunicação serviços de mensagens criptografadas como o Sky ECCLink externo. Organizações criminosas dos Bálcãs focam principalmente na distribuição e vendas diretas na região. A cooperação entre diferentes grupos criminosos ocorre sem conflitos significativos ou disputas de gangues, já que o mercado é suficientemente grande para todos, embora o número de assassinatos relacionados esteja aumentando. A Fedpol tem como objetivo desmantelar estas grandes redes criminosas e comprometer a segurança de suas operações na Suíça.
Retornamos ao porto de Kleinhünigen, onde os guardas de fronteira prosseguem com sua incansável vigilância. Ainda assim, os métodos de controle nem sempre são suficientes para barrar a entrada de cocaína. Nessa tarde de fevereiro, a equipe liderada por Ioannis avalia três contêineres sem encontrar indícios que demandem inspeções mais aprofundadas, como o emprego de cães farejadores ou a procura por mercadorias ocultas em compartimentos secretos. Assim, as atividades de fiscalização no terminal suíço de Basileia se encerram por hoje. Os guardas se afastam do centro de transbordo, deixando o cais nas mãos das gélidas rajadas de vento. O céu cinzento é cortado pelo voo lúdico das gaivotas, cujos gritos agudos preenchem o ar, retomando a solitária atmosfera do local.
Brasil
O tráfico de drogas é uma questão global que impacta a saúde, a segurança e o bem-estar das sociedades. Entre as substâncias ilícitas mais traficadas, a cocaína ocupa uma posição proeminente. O aumento das apreensões de cocaína em diversos países, incluindo o Brasil, Portugal e outras nações europeias, tem chamado a atenção das autoridades e da comunidade internacional.
No Brasil, a Polícia Federal apreendeu um valor recorde de R$ 2,07 bilhões em bens e valoresLink externo de grupos criminosos envolvidos no tráfico de drogas entre janeiro e novembro de 2023. Esses dados são provenientes da Coordenação-Geral de Repressão a Drogas, Armas, Crimes contra o Patrimônio e Facções Criminosas (CGPRE) da PF.
Embora as apreensões de bens e valores relacionados ao tráfico tenham aumentado, as quantidades de cocaína (68 toneladas até novembro de 2023) e maconha (364 toneladas) apreendidas diminuíram em comparação com anos anteriores (conforme mostrado no gráfico abaixo). Mesmo com essa queda, as apreensões de drogas permanecem acima da média histórica, de acordo com os dados da PF.
Um dos fatores que contribui para o aumento das apreensões no Brasil é a posição geográfica do país, que o torna um ponto crucial de trânsito para o tráfico de drogas entre os países produtores da América do Sul e os mercados consumidores na Europa e nos Estados Unidos.
As apreensões de drogas realizadas pela Receita FederalLink externo, publicadas no Balanço Aduaneiro de 2023, totalizaram 35,7 toneladas, sendo a grande maioria composta por cocaína e maconha (representando 98,2% do peso total apreendido). O volume de apreensões de cocaína concentrou-se nos portos, especialmente na saída do Brasil (correspondendo a 89%).
O Porto de Santos/SP continua sendo o local onde a Receita Federal mais efetuou apreensões de cocaína em 2023, totalizando 7,1 toneladas. Em seguida, temos os portos de Santa Catarina e Paraná, com 3,5 toneladas cada, e os portos do Rio de Janeiro e Espírito Santo, com 3,3 toneladas. Quanto à maconha, houve um aumento significativo nas apreensões em relação a 2022 (um crescimento de 82%). Os maiores volumes de apreensões de maconha continuam no Paraná (com 9,6 toneladas) e em São Paulo (com 8,3 toneladas), representando 94% do total apreendido pela Receita Federal no país12. Essas ações são essenciais para combater o tráfico de drogas e proteger a sociedade contra os danos causados por essas substâncias ilícitas.
Portugal
Portugal tem sido impactado por um aumento significativo nas apreensões de cocaína, atribuído à sua posição estratégica na rota do tráfico de drogas entre a América do Sul e a Europa.
As autoridades lusas registraram um volume de cocaína apreendida em 2023 superior ao total do ano anteriorLink externo. Segundo Artur Vaz, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária (UNCTE/PJ), os números de 2022 foram já ultrapassados em termos de quantidade.
No ano de 2022, as autoridades portuguesas confiscaram 16,5 toneladas de cocaína em 2.008 operações policiais, conforme os dados divulgados no relatório anual “Combate ao Tráfico de Estupefacientes em Portugal”, elaborado por várias entidades que lidam com esse fenômeno no país.
Europa
Na Europa como um todo, também tem sido observado um aumento nas apreensões de cocaína. Segundo o Relatório Europeu sobre Drogas de 2023Link externo, emitido pelo Observatório Europeu das Drogas e das Toxicodependências (OEDT), as apreensões de cocaína no continente atingiram 303 toneladas em 2021.
Os países que lideram em termos de volume de apreensões de cocaína na Europa são Bélgica, Espanha e Países Baixos, os quais combinados representam mais de 70% do total apreendido no continente. Esses países desempenham um papel crucial como principais pontos de entrada para a cocaína traficada da América do Sul, devido às suas extensas conexões portuárias e aeroportuárias.
Mundo
Em escala global, as apreensões de cocaína também têm registrado um aumento notável. Conforme destacado no Relatório Mundial sobre Drogas de 2023Link externo, publicado pelas Nações Unidas, as apreensões de cocaína atingiram um pico de 2026 toneladas em 2021Link externo, representando um incremento de 42% em relação ao ano anterior.
A grande parte da cocaína confiscada mundialmente continua a ser proveniente da América do Sul, com destaque especial para a Colômbia, que lidera como o maior produtor global de cocaína. Entretanto, o aumento da produção em países como Peru e Bolívia também tem contribuído para o crescimento das apreensões em nível global.
Edição: M. Leutenegger
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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