Uma família quase moçambicana (I)
A vida e morte de René Gagnaux, o médico e missionário suíço que salvou vidas e foi condecorado como héroi em Moçambique.
No comunismo, ele precisava plantar e criar animais para comer. Nos anos da guerra civil, ele operava até quinze pessoas por dia em condições precárias, não distinguindo soldado ou guerrilheiro.
Pierre Gagnaux tira fotos da caixa guardada no alto de uma prateleira no seu apartamento em Maputo. Uma delas, preto-e-branco e já amarelada pelo tempo, mostra um passeio da família feito no final dos anos 70 na Ilha da Inhaca, um dos pontos turísticos mais conhecidos em Moçambique.
No meio das lembranças do passado, ele encontra também uma revista em quadrinhos. Seu título: “Massassane – uma biografia do Dr. René Gagnaux”. Financiada pela Agência Suíça de Cooperação, a publicação conta nas suas 32 páginas, a história de um médico e missionário que abandonou a segurança do país dos Alpes para ajudar um povo sofrido nos confins da África.
– Meu pai era um idealista – reforça Pierre e explica – Massassane significa no xangana, o idioma local, homem bom. Era assim que eles conheciam o meu pai.
Missionário
René Gagnaux nasceu em 4 de janeiro de 1929 em Lausanne, na Suíça. “Na juventude chegou a carregar sacos de carvão para ajudar a pagar os estudos”, conta a brochura. Depois de estudar medicina em Paris, ele foi estagiário em Yverdon, um povoado distante trinta quilômetros de Lausanne. Foi lá que ele conheceu Claude, uma técnica de laboratório no hospital, com quem casaria em 1960.
Pouco depois o casal foi para Portugal, onde René estagiou no setor de medicina tropical no Hospital do Ultramar. Nessa época, o suíço decidiu que iria trabalhar num país do Terceiro Mundo, onde um profissional como ele poderia ajudar mais pessoas do que na Suíça.
Através de amigos no coro de uma igreja, Gagnaux descobriu que a Missão Suíça estava procurando um médico em Moçambique. Depois de acertar os papéis, a família chegou à Lourenço Marques, o antigo nome colonial de Maputo, em 13 de setembro de 1964.
Durante onze anos, René e sua esposa trabalharam no Hospital do Chamanculo, na província de Maputo. Em 25 de junho de 1975, militantes da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) declaram a independência de Portugal, instaurando ao mesmo tempo um regime socialista no país. Todos os imóveis, bancos, escolas, hospitais e clínicas foram nacionalizados. Os empregados estrangeiros tinham que decidir no prazo de uma semana se queriam continuar a trabalhar para o Estado ou abandonar o país. O departamento missionário tomou responsabilidade pelos dezesseis missionários que ficaram, dentre eles René Gagnaux. Seu local de trabalho passou a ser o hospital de Xinavane, onde atuaria até o fim da vida.
O médico suíço já estava tão integrado ao país, que até já criava animais e plantava legumes na sua própria “machamba”, como os moçambicanos denominam uma área familiar de cultivo. Durante os anos de comunismo, a penúria de alimentos era uma constante.
No hospital de Xinavane, Gagnaux e seus assistentes chegavam a operar de 10 a 15 pessoas por dia, muitas vezes em condições precárias devido à falta de medicamento e aparelhagem.
Guerra Civil
Ninguém sabe ao certo quando a guerra civil estourou em Moçambique. No início dos anos 80, o país já tinha vários focos de guerrilha, comandada pela Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Durante os anos de conflito, o hospital de Xinavane recebeu centenas de feridos, entre soldados, civis ou membros da guerrilha.
Uma vez, tropas oficiais ameaçaram matar um paciente, de quem se suspeitava estar apoiando os inimigos. Somente com pressão internacional, Gagnaux conseguiu salvar sua vida. Essa e outras histórias foram vividas pelo médico suíço, que uma vez também foi raptado pelas tropas da Renamo e depois libertado sem conseqüências. Mesmo quando soldados colocaram fogo na enfermaria ou durante os freqüentes tiroteios e combates diretos nas proximidades do hospital, ele não desistiu do seu trabalho em Xinavane.
A dedicação fez com que, em 1989, René Gagnaux recebesse uma medalha do governo moçambicano, que acabou não buscando. Apesar ter sofrido um ataque cardíaco no fim dos anos oitenta, o médico suíço continuava a operar em Xinavano e também nas aldeias da província. “Para chegar a essas regiões distantes, ele usava um jipe com tração nas quatro rodas. Por medo de emboscadas ou roubo, ele não costumava parar nos controles. Afinal, as pessoas o conheciam na região”, conta Pierre.
Reportagem continua na segunda parte. Clique AQUILink externo acessá-la.
swissinfo, Alexander Thoele
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