É preciso desmitificar o Brasil para viver em paz em outros países
Ela é brasileira mas escreveu um livro em inglês para contar aos estrangeiros como funciona o Brasil. A ideia surgiu da necessidade de explicar essa complexa sociedade, mas acabou por ajudá-la a fortalecer sua identidade nacional. Simone Torres Costa é mestre em psicologia e coach intercultural e vive no exterior há 17 anos.
O livro Deconstructing Brazil: Beyond Carnival, Soccer and Girls in Small BikinisLink externo (em português “Desconstruindo o Brasil: entre carnaval, futebol e garotas em pequenos biquínis”), desmitifica crenças de um país multicultural e reforça a importância de se estabelecer uma relação mais saudável com a história e identidade do país de origem, primordial para driblar melhor o processo de adaptação, ajudar na construção da segurança psicológica e uma consequente vida mais feliz no exterior.
* Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
swissinfo.ch: Por que a Senhora decidiu escrever um livro sobre o Brasil e em inglês?
Simone Torres Costa: Porque era muito frustrante para mim ver que o Brasil tem uma imagem tão deturpada no exterior. Eu observei que, ao conduzir meus treinamentos interculturais, eu precisava explicar o que é o nosso país e o quão complexo se apresenta para nós mesmos e para os outros povos. E eu realmente não queria apresentar essa sociedade de forma muito superficial, então eu pesquisei história, li antropólogos como Darci Ribeiro e entrevistei outros profissionais. Esse livro, então, foi mais dirigido aos estrangeiros, mas é de importante ajuda nossos conterrâneos também.
Pesquisar sobre o Brasil me ajudou a fortalecer a minha identidade enquanto brasileira migrante. Apesar de psicóloga, também vivencio os desafios de morar fora. E não é fácil para nós brasileiros vivermos ao Norte do mundo, onde a cultura é tão diferente. Emigrar engloba um processo de mudanças internas muito profundas e conhecer e valorizar a nossa cultura devem fazer parte desse fenômeno.
swissinfo.ch: O que mais surpreendeu a Senhora ao tomar conhecimento de fatos históricos antes ignorados?
S.T.C.: Foi primeiramente o nosso desconhecimento, enquanto povo brasileiro, em relação aos indígenas e às influências sofridas por esses predecessores em nossa vida contemporânea e também nosso “esquecimento seletivo” sobre a escravidão e seus impactos na nossa cultura. Não por nossa culpa, mas por terem maqueado tanto a realidade histórica daquela época.
O livro demorou quatro anos para ficar pronto. Nesse processo, conheci o historiador e arqueólogo Edson Gomes, que é um profundo conhecedor dos indígenas. Ele tem um museu particular em Campinas sobre essas culturas, morou na Amazônia e já visitou mais de 200 aldeias no país. E o mais curioso é que o público frequentador desse local são os estrangeiros; os brasileiros praticamente o desconhecem. Nós infelizmente não fomos estimulados a nos interessar pela cultura indígena e a dos negros. Quem nos contou a nossa história foram os colonizadores; nesse processo, muita coisa se perdeu.
Eu comecei a pesquisa para entender de onde vínhamos e acabei por descobrir a riqueza de uma cultural nativa, a enorme influência que esses povos tiveram e têm na nossa vida hoje e que sequer sabemos. Para dar um exemplo do quanto ignoramos isso, pergunto como é formada a etnia dos nossos antepassados? Nós não sabemos. Até onde foi a influência dos povos indígenas na nossa vida? Tão pouco temos certeza devido à borracha que foi passada nesse período, o que é uma lástima para nossa identidade nacional.
swissinfo.ch: O capítulo cinco descreve a herança colonial que formou a nossa sociedade e nos fez sermos hierárquicos, por exemplo. Relacionado a isso, a Senhora explana sobre a utopia de que somos um povo aberto à diversidade cultural. Poderia explicar um pouco mais?
S.T.C.: Vivemos há séculos com a crença de que somos um caldeirão multicultural. Na verdade, pertencemos a uma sociedade que dificilmente se mistura. Basta olhar para a nossa diferenciação de classes, para o racismo, para a negação das nossas origens, tanto indígena quanto africana. Ninguém quer dizer que tem um negro na família, mas o tataravô europeu é comemorado. Não somos dividimos em ricos e pobres simplesmente, mas subdivididos em diversas faixas econômicas e sociais.
Eu mostro no livro a foto de um escravo descalço, que representa exatamente essa diferenciação de status, que já teve início naquela época. A classe mais baixa de escravos era a dos recém chegados, que ainda não falavam o português, depois vinham os que falavam a língua da corte, uma classe acima era a dos nascidos em território nacional e assim sucessivamente.
Com a Abolição, eles se tornaram a classe mais baixa do país como um todo, já que foram morar no que é conhecido como a primeira favela brasileira. Ao ignorarmos essa forte característica da nossa sociedade, nos enganamos e estranhamos o fato de que em outros países as pessoas não funcionam dessa maneira. Em pensar que a nossa primeira constituição de 1924 não ter mencionado a escravidão já mostra o quanto a nossa história foi contada de maneira diferente da realidade.
swissinfo.ch: Então a Senhora acredita que essa visão errônea da nossa história pode nos atrapalhar no processo de aculturação em outro país?
S.T.C.: Eu respondo essa pergunta baseada na minha dissertação de mestrado em psicologia pela Universidade de Lund que concluí. Estudos demonstram que, quando o imigrante mantém e valoriza a sua cultura, ele se adapta melhor psicologicamente. Esse é, inclusive, o grande dilema da adaptação: para eu poder melhor me adaptar naquele país, preciso negociar comigo até que ponto estou preparada para incorporar a nova cultura e manter a minha própria. Obviamente esse é um processo muitas vezes inconsciente.
Torna-se saudável, nesse caso, manter o equilíbrio entre manter nossa identidade nacional e, ao mesmo tempo, que assimilar novas culturas. Este equilíbrio é essencial e se faz necessário cuidar para que este dilema não se converta em algo conturbado, doído. Esse tipo de desajuste pode trazer até doenças como depressão.
O processo de aculturação, que é quando imigramos e somos “convidados” a incorporar alguns pontos da cultura do país estrangeiro, não é fácil. Com ele, vem o dilema de manutenção do seu antigo mais o novo que precisa entrar. E então fica a pergunta interna: o quanto eu mantenho da minha cultura de origem e o quanto eu assimilo a cultura nova? Por uma questão de “espaço interno”, a pessoa começa a negociar consigo mesma como será essa redistribuição. Tem gente que se sai bem, incorporando um pouco da nova e mantendo suas raízes. Outras não. E uma coisa é certa, quanto mais o imigrante renega as suas origens, mais conflitos de identidade terá nessa fase.
A negação da nossa história prejudica, já que a falta de reflexão sobre quem somos interfere na nossa identidade e nos atrapalha no momento da aculturação. Pois eu então aconselho: tenha convicção de quem você é sem vergonha, aliás com muito orgulho. Se eu venho de um país pobre e vou para um mais desenvolvido, vou levar isso na minha bagagem. Mas algumas pessoas, de uma forma inconsciente, fazem um tremendo esforço para ficar igual ao outro. Isso atrapalha a performance dessa pessoa, porque ela não é igual a outra, ela é única. Dessa maneira, muitos imigrantes tornam-se inseguros quando chegam próximos a um europeu, por exemplo. O resultado é que se colocam em dúvida, com a identidade nacional colocada à prova também. Eu mesma já vi clientes brasileiros, com currículos valorizados no mercado internacional, se sentirem muito inseguros quando trabalham fora do Brasil.
swissinfo.ch: Quais seriam os maiores ensinamentos que desse livro para um brasileiro?
S.T.C.: Com certeza seria a importância da consciência cultural e das reflexões necessárias a esse respeito. É importante se questionar sobre qual a verdadeira imagem que temos de nós mesmos e qual estamos engolindo só porque interessa a um determinado grupo. Repensar a nossa história enquanto nação e repensar alguns pontos obscuros e paradoxais em relação à nossa identidade são essenciais. Por exemplo, será que eu tenho mesmo que esticar os meus cabelos só para negar uma possível associação com escravos, e ao mesmo tempo sair espalhando aos quatro cantos que somos uma nação que aceita a diversidade?
Isso atrapalha a nossa autoimagem. Mas conhecer a nossa história e aceitar nossa identidade, pelo contrário, ajuda a nos reconhecermos na nossa sociedade ou fora dela. Porque a identidade é o nosso pilar psicológico e guia o nosso comportamento. Se eu acho que minha cultura é feia, por que eu falaria português com meus filhos, por exemplo, se estivesse morando no exterior?
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