“A sociedade funciona como uma orquestra”
O pianista brasileiro Ricardo Castro, professor na Suíça e diretor da Orquestra Sinfônica da Bahia, não acredita que a criação de uma orquestra numa favela mude a realidade da periferia.
Em entrevista à swissinfo, ele fala sobre o projeto Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojibá), que ele coordenada e que segue um modelo bem-sucedido da Venezuela.
Para Castro, não ocorre a transformação social quando se cria orquestras em favelas ou nas periferias. Elas têm de estar em locais acessíveis a todas as classes sociais. “Só assim se efetiva a integração. A orquestra coloca ricos e pobres na mesma sala, tocando a mesma nota e com o mesmo resultado”, explica. Antes de um concerto em Morges, na Suíça, Ricardo Castro concedeu a seguinte entrevista à swissinfo.
swissinfo: Como surgiu a idéia de criar o Neojibá?
Ricardo Castro: Conheci este projeto na Venezuela, quando me apresentei como solista em Caracas. Eles provaram que é um projeto educacional muito desenvolvido, aprimorado e que dá resultados. Achei que poderia dar certo no Brasil.
swissinfo: E por quê?
R.C.: Acho que temos as mesmas similaridades e dificuldades (risos). É diferente adotar um projeto asiático ou europeu no Brasil. Temos semelhanças culturais, sociais, além do perfil da população parecido. Isso ajuda muito.
swissinfo: E foi o atual secretário da Cultura que o convidou?
R.C.: Já tinha comentado o assunto com ele (Márcio Meirelles) porque o conheço, mas quando assumiu me ligou aqui na Suíça para começarmos o projeto. E me convidou também para ser o diretor da Orquestra Sinfônica da Bahia. Ficou interessante poder combinar as duas coisas. Mas gosto de ressaltar que não inventei nada: simplesmente montei na Bahia um projeto que tem dado certo na Venezuela…
swissinfo: Quando começou o projeto?
R.C.: Em janeiro de 2007. De junho a setembro levei alguns jovens à Venezuela para entenderem o sistema de formação de músicos naquele país. Em setembro fizemos a primeira apresentação.
swissinfo: E como é o funcionamento do programa?
R.C.: Esse primeiro núcleo tem a particularidade de ser profissionalizante porque forma os monitores, responsáveis pela formação de outros músicos. Assim que este núcleo estiver sólido, com os monitores formados, vamos poder criar outros.
swissinfo: Quantos jovens fazem parte do projeto hoje?
R.C.: Inicialmente eram 100, mas já são 130. É que já temos um núcleo formado no projeto. Cerca de 30 deles já são crias do primeiro grupo.
swissinfo: E quais os critérios usados para a seleção?
R.C.: Para esse primeiro grupo, que é formador, os pré-requisitos eram: tocar um instrumento, saber ler partituras e ter as tardes livres.
swissinfo: Este núcleo vai aumentar?
R.C.: Este não. Pretendemos mantê-lo em 130 porque a estrutura do Teatro Castro Alves é adequada a este número de pessoas. Pretendemos formar outros núcleos.
swissinfo: Vocês já sabem os locais?
R.C.: Estamos fazendo um mapeamento do Estado, mas ainda não sabemos. É preciso ter uma certa infra-estrutura para o ensino da música: uma boa acústica, silêncio para que haja concentração e um mínimo de conforto porque são muitas horas de trabalho. A formação de novos núcleos depende do que conseguirmos encontrar.
swissinfo: Nos novos núcleos os estudantes precisarão ter os mesmos pré-requisitos?
R.C.: Não. Só a disponibilidade de tempo. Nos outros núcleos queremos dar a formação musical desde o início. Não é preciso ter estudado. Só vontade. Numa sondagem, que faz parte deste mapeamento do estado, 500 jovens fizeram uma pré-inscrição. Ou seja: querem tocar numa orquestra! Algumas pessoas ficaram surpresas, mas eu não.
swissinfo: E por que? Você esperava este interesse mesmo com o sucesso da música popular no Brasil e na Bahia?
R.C.: Sim. Onde há diversidade há abertura. A diversidade musical brasileira abre espaço também para a música erudita. Acho que é o discurso de quem faz a música erudita no Brasil que cria esse mito de que a música clássica é de elite. Cria-se esse carisma de música de estudiosos…
swissinfo: Você falou da Venezuela. Como está o programa lá?
R.C.: Lá já existe há 32 anos, tem cerca de 300 mil participantes nos 138 núcleos. Se você pensar que é um país com 25 milhões de habitantes, há mais de 1% da população envolvida no projeto…A Bahia tem 17 milhões de habitantes.
swissinfo: Quantas horas os jovens do Neojibá tocam por dia?
RC: Três horas, de duas às cinco. Quando temos apresentações aumentamos um pouco a carga horária. O diferencial deste projeto é que ele funciona todos os dias… É a única forma de desenvolver o aprendizado. Um jovem tenista também tem de jogar todos os dias…Se ele pára, o resultado nas quadras não será o mesmo. E a música também tem um lado de higiene mental que a pessoa se acostuma. Faz falta.
swissinfo: O Neojiba é gratuito. É mais voltado a crianças carentes?
R.C.: É gratuito, mas este é outro diferencial: é dirigido aos jovens que queiram aprender música orquestral. Isso significa que é aberto a todas as classes sociais. Não é porque o jovem tem dinheiro que não pode participar dele. O foco é a música. E a integração se dá por ela.
swissinfo: O foco não é tirar o jovem das ruas…
RC. Não é este o objetivo. Não tenho nada contra outros projetos que busquem entreter os jovens com a música. Mas este projeto é voltado para a formação orquestral. E a integração se dá pela pratica da música na orquestra, que funciona como uma sociedade…
swissinfo: Você pode explicar isso melhor?
RC.: O Jose Antonio Abreu, que dirige o programa da Venezuela, diz que a sociedade funciona como um orquestra: há um sistema de hierarquias bem estabelecido, a necessidade da disciplina e do companheirismo porque você precisa escutar o outro. Isso tudo com o objetivo de criar a beleza. Essa experiência planta no jovem uma semente para que ele se torne um cidadão melhor. Ele compreende que pode entrar em acordo com a sociedade, quer seja pobre ou rico. A orquestra coloca os dois na mesma sala, tocando a mesma nota e com o mesmo resultado.
swissinfo: Você acha que há público para a música clássica no Brasil?
R.C.: Um padeiro da Europa não conhece mais de música que o padeiro do Brasil, mas o daqui assiste a concertos. Criou-se um discurso de que a música erudita seria melhor porque seria uma música de estudiosos. Isso foi um erro durante muitos anos. A Venezuela provou o contrário. Esse elitismo foi um dos problemas. O outro é a qualidade do concerto.
swissinfo: Como assim?
R.C.: A pessoa vai a um concerto não gosta e acha que não entende de música clássica. Em 98% das vezes o concerto é ruim…Tenho absoluta certeza disso. E o outro problema é que o sistema de ensino da música erudita é ruim no Brasil. Todo músico para se formar mais decentemente teve de sair do País. Isso é um absurdo.
swissinfo: O projeto pressupõe intercâmbios culturais?
R.C.: Nossa meta é oferecer uma formação de alto nível e, ao mesmo tempo, mobilidade. Queremos oferecer dois a três meses de estágios em outros países. É importante conhecer o ensino da música na Europa, que é o berço da arte que praticamos… É a base da música erudita, mas não somente…É preciso lembrar que a música européia se inspirou em sistemas de composição da Ásia. No século 20, por exemplo, os franceses se inspiraram no oriente para compor…O que é importante é a mobilidade do conhecimento, que hoje em dia está muito mais democratizado.
swissinfo: Há a intenção de levar o projeto a todo o país?
R.C.: É uma questão de recursos humanos. Recursos espirituais e vontade nós temos (risos). Não adianta nada construir hospitais se os médicos não são formados. Não adianta criar um monte de núcleos se os professores não sabem como ensinar. No caso dos hospitais, os pacientes vão morrer. No caso da música, os meninos vão abandonar a música e o público vai correr (risos). Temos de investir na formação desses professores. E que é o grande déficit nacional. Pouca gente sabe ensinar música no nível que queremos.
swissinfo: E por que? Quais são os problemas dessa pedagogia?
R. C: Acho que é falta de investimento no setor. O último ministro da Cultura, que inclusive é baiano, não fez nada na área de concertos nos últimos seis anos. Nada. Pode ter feito maravilhas onde quer que seja, mas na área de orquestras não houve nada. Nossa participação na música erudita é ridícula. Acho que não chega a 50 o número de brasileiros no mundo da música que tenham algum destaque. Os concursos internacionais são um termômetro: não há brasileiros inscritos. Não estou falando de vencer: só de se inscrever. Alguma coisa está errada.
swissinfo: Qual o conselho que você daria para quem quer seguir a carreira musical?
R.C: Não ficar muito centrado em si mesmo. A música é uma linguagem e o músico que fica isolado seria o equivalente a uma pessoa que ficasse trancada num quarto falando consigo.
Um dia o vocabulário se esgota se você não ouvir os outros. A música de câmara, por exemplo, é um bom caminho. Se não pode tocar numa orquestra ou se não há uma orquestra: crie um grupo de câmara. Não espere anos estudando. O diálogo vai fazer com que ele cresça com os outros músicos. Esse é outro erro que existe no ensino mundial da música: as pessoas têm aulas particulares e tocam isoladas. É preciso haver diálogo para se desenvolver. A pessoa pode aprender individualmente, mas não se restringir a isso.
Entrevista swissinfo, Lourdes Sola
Quando tinha 3 anos, o pianista Ricardo Castro sentou-se à frente do piano e se encantou. De lá para cá tem encantado platéias pelo mundo afora. Baiano de Vitória da Conquista, aos 43 anos, Castro vive desde os 19 na Suíça, onde terminou sua formação musical.
No ano passado, deu início ao projeto Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia – Neojibá. O programa segue o modelo do bem-sucedido Sistema Nacional de Orquestras Juveniles e Infantiles da Venezuela que existe há mais de 30 anos. “Não criei nada, apenas montei na Bahia um projeto que vi lá”, diz – sempre com modéstia e simplicidade.
Pode não ter inventado nada, mas sua contribuição tem sido fundamental. Afinal, tem transmitido aos jovens todo o seu conhecimento musical – que não é pouco.
Atualmente, 130 jovens estudam gratuitamente três horas por dia no Teatro Castro Alves, em Salvador, e recebem uma bolsa-auxílio, transporte e um lanche do governo do Estado. Para dar a continuidade desejada ao projeto, Castro buscará parcerias com outras entidades ou empresas privadas. “Não podemos nos restringir apenas às verbas do Estado”, explica.
Mais do que estimular o aprendizado da música orquestral, Ricardo Castro acha que é preciso quebrar alguns tabus. Para ele há o mito no Brasil de que a música clássica é uma arte de estudiosos e de elite. “Acho que o discurso de quem faz a música erudita no Brasil cria esse mito”, diz.
Outro diferencial do Neojibá é que não é voltado apenas à população carente. É direcionado a todos que queiram tocar um instrumento numa orquestra, quer seja pobre ou rico.
Ricardo Castro nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, tem 43 anos e chegou à Suíça com 19.
Atualmente é professor em Fribourg, diretor da orquestra sinfônica da Bahia e coordenador do projeto Neojibá, na Bahia.
Iniciou sua formação musical no Brasil e começou a tocar espontaneamente aos 3 anos, mas aos 8 deu seu primeiro recital. Era aluno brilhante de Esther Cardoso.
Em 1984 entrou para o Conservatório Superior de Música de Genebra na classe de virtuosidade de Maria Tipo e de regência de Arpad Gerecz. Um ano depois, conquistou o primeiro lugar no concurso Rahn, em Zurique.
Em 1987, recebeu o Premier Prix de Virtuosité avec Distinction e Félicitations du Jury em Genebra. No mesmo ano foi vencedor do concurso internacional da ARD de Munique.
Em 1993, venceu o Leeds International Piano Competition na Inglaterra.
Em seu currículo figuram convites para tocar com BBC Philharmonic de Londres, English Chamber , Academy of St. Martin in the Fields, City of Birmingham Symphony, Tokyo Philharmonic, Orchestre de la Suisse Romande e Mozarteum de Salzburg.
Em 2005, Ricardo Castro acompanhou a cantora Daniela Mercury no trio elétrico 2222 em Salvador.
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