Cinema brasileiro: a classe média vai ao inferno
“O Som ao Redor”, primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, disseca as ânsias e fobias da classe média enclausurada em condomínios onde as relações sociais pouco mudaram desde a escravidão.
O filme do diretor recifense participou da mostra competitiva “Pardi di domani” no 65° Festival Internacional de Cinema de Locarno.
Tudo se passa nos limites de uma quadra de um bairro de classe media alta do Recife, mas a história também poderia perfeitamente se encaixar num engenho de açúcar da Zona da Mata em qualquer momento da história do Brasil. O “coroné” agora é proprietário de vários condomínios de luxo (mas ainda conserva o seu engenho, decadente e dilapidado, no interior), as mucamas são domesticas, e os jagunços vestem coletes de segurança privada.
A violência das relações sociais, que pouco difere da realidade em outras grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou Salvador, está presente em cada sequência e em cada diálogo onde as ansiedades securitárias da classe média dão o tom – no entanto, não há um tiro ou cena de sangue e violência explícita.
Exibido na última quarta-feira no Festival de Locarno, “O Som ao Redor” é o primeiro longa-metragem do recifense Kleber Mendonça Filho, conhecido anteriormente dos circuitos mais cinéfilos pelo seu trabalho como crítico de cinema para o Jornal do Commercio, de Pernambuco, e principalmente como autor de vários curtas-metragens brilhantes, como “Vinil Verde” (2004), “Eletrodoméstica” (2005) e “Recife Frio” (2009).
Influência de Lula
Em “O Som ao Redor”, Mendonça constrói um instigante microcosmo do Brasil pós-Lula. No entanto, mais importante que o universo inventado e filmado pelo diretor na rua onde ele próprio mora, é o cuidadoso trabalho de desconstruir os clichês e preconceitos de classe e cor arraigados inconscientemente na cultura coletiva do Brasil.
Em entrevista à swissinfo.ch, Mendonça afirma que a ideia do filme partiu da constatação de uma nova consciência, e autoestima valorizada, no seio das classes mais desfavorecidas. Para o diretor, isso é resultado de oito anos de governo Lula, mas não apenas resultado direto de ações governamentais.
Para além de “panfletismo” partidário, trata-se de um processo de catarse coletiva com a figura de um presidente que destoa de seus antecessores (“sujeitos de terno e gravata com diploma estrangeiro… ou coronéis do Maranhão”) e, pela primeira vez na história, fala diretamente e sem filtros às classes mais baixas da pirâmide.
“Como toda família de classe média no Recife”, conta o diretor, “a gente tinha uma empregada que trabalhou para nós por décadas. Ela não tinha nenhum dente, totalmente banguela. A sua filha já tinha uns 60% dos dentes, mas agora a sua neta não só tem toda a dentaria como ainda tem um aparelho pros dentes fornecido pelo SUS. No meu tempo de garoto, aparelho pros dentes era coisa de gente rica”.
Mendonça se diz revoltado com os retratos do pobre, “pretos” e “nordestinos” que abundam na dramaturgia brasileira, na TV e no cinema. Quando não são imbuídos de um paternalismo caridoso, ou, na melhor das hipóteses, de um parti-pris ideológico, são reflexos quase inconscientes dos preconceitos mais ancestrais.
A importância de um filme como “O Som ao Redor” fica clara justamente nesse incômodo espelho da mentalidade de uma classe média urbana, encarcerada em seus próprios apartamentos em cidades onde o espaço público tonou-se um vácuo: a rua foi privatizada e a paúra da insegurança habita os pesadelos e justifica os preconceitos.
Visão social
“O Som ao Redor” não é uma obra solitária nesse esforço de reflexão da mentalidade urbana brasileira. Mendonça já havia explorado esse tema em seus curtas-metragens, e outros autores partilham das mesmas preocupações. Logo mais chega às telas “Domésticas”, uma resposta com título homônimo aos preconceitos e ironias de classe contidos no longa de Fernando Meirelles (2001), assim como o documentário “Um Lugar ao Sol” (2011), de Gabriel Mascaro, e o longa paulista “Trabalhar Cansa” (de Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011).
Mesmo assim, essa é uma visão do Brasil que as plateias, tanto brasileiras quanto estrangeiras, não estão acostumadas. O filme foi exibido em vários países (Holanda, EUA, Suíça, entre outros) e sua première brasileira ocorrerá na próxima semana no Festival de Gramado. Por mais que o filme tenha deixado as plateias estrangeiras perplexas, e não obstante as resenhas favoráveis, Mendonça está mesmo ansioso para ver a reação do filme no Brasil. Pode-se apostar em uma bela polêmica, afinal as plateias nacionais, acostumadas com a linguagem novelesca e “carioquês global” de grande parte da produção nacional, pode não se identificar (ou se recusar a se identificar) com uma maneira particular de se filmar e com um sotaque distante do eixo Rio-São Paulo – que, por sua vez, não é mais dominante como referencia à produção cinematográfica brasileira.
Novas perspectivas
Um novo eixo cine-geográfico vem se impondo no país desde o lançamento, em 1997, de “Baile Perfumado”, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Esse novo polo criativo liga Recife à Fortaleza e Belo Horizonte, e se caracteriza por uma linguagem cinematográfica livre e criativa – isto é, fora dos padrões televisivos e muito mais antenados com a produção cinematográfica globalizada – aliada à exploração e exposição das feridas mais profundas no tecido social e cultural do Brasil. E o fato de que todos esses cineastas tenham tido bastante sucesso só tem contribuído, segundo Mendonça Filho, a avançar o debate e a colaboração entre os realizadores.
A globalidade dessa produção pode inclusive ser atestada numa curiosa coincidência. Após exibir “O Som ao Redor” em festivais nos EUA e Europa, Mendonça diz haver recebido mais de 30 e-mails apontando um suposto plágio onde uma das personagens, uma dona-de-casa, se masturba em cima de uma trepidante máquina de lavar roupa. Tal cena é também protagonizada pela atriz January Jones na segunda temporada (2008) do seriado “Mad Men”, e os tais e-mails chegavam a acusar Mendonça de plágio. Entretanto, Mendonça apenas transplantou para “O Som ao Redor” a cena de masturbação que é o ápice de seu curta-metragem “Eletrodoméstica”, de 2005.
Curiosamente, a sequência em “Mad Men” acontece com uma bossa bem brasileira como música de fundo… seria isso uma referência direta e propositada? Seja homenagem, plágio puro, coincidência ou sincronicidade, o fato é que o resto do mundo anda prestando mais atenção ao cinema feito no Nordeste. Seria bom se o resto do Brasil também fizesse o mesmo.
O filme vencedor do Leopardo de Ouro, a principal mostra competitiva internacional do 65° Festival de Cinema de Locarno em 2012, foi “La Fille de Nulle Part” (A menina de lugar nenhum) do cineasta francês Jean-Claude Brisseau.
“Wo hei you hua yao sho” (Quando chega a noite), uma produção conjunta entre a China e a Coréia do Sul, levou dois prêmios: o de melhor direção (Ying Liang) e melhor atriz (An Nai)
O Leopardo de ouro para o melhor ator foi entregue a Walter Saabel, do filme austríaco “Der Glanz des Tages” (O brilho do dia).
O prêmio Boccalino de Ouro de melhor direção, criado por um grupo de jornalistas e críticos de cinema em Locarno, foi entregue a dupla de diretores portugueses, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, cujo filme “A última vez que vi Macau” participou da principal mostra competitiva.
O Premio Especial do Júri foi para a comédia americana “Somebody up there likes me” (Alguém lá em cima gosta de mim), do diretor Bob Byington.
Dos filmes populares e fora do concurso apresentados na Piazza Grande, a principal praça pública em Locarno, o escolhido pelo público foi a produção alemã-austríaca-britânica “Lore”, da diretora Cate Shortland.
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