‘Las Toreras’ pega a tragédia hispano-suíça pelos chifres
O novo documentário da artista suíça Jackie Brutsche conta uma história de arte e reconciliação, a partir de um tabu familiar e um suicídio que causou rompimentos em uma família hispano-suíça.
Um deserto árido. Uma figura de cabelos compridos, vestida de preto, usando uma capa esvoaçante, chapéu de cowboy, botas combinando e com os olhos delineados por um desenho de sol. Parece uma mulher fantasmagórica com uma máscara branca. O que pode remeter ao cenário de um filme de faroeste ácido da década de 1970, dirigido pelo diretor chileno de vanguarda Alejandro Jodorowsky, é na verdade uma das cenas de um filme de gênero oposto: um novo documentário suíço chamado Las Toreras (As toureiras).
A taciturna guarda solitária que se vê, exibindo a máscara branca como uma busca metafórica por uma abordagem mais característica de filmes de não-ficção, é rapidamente identificada como Jack Torera, um alter ego criado pela diretora de Las Toreras, Jackie Brutsche – cineasta, musicista, performer e artista visual que vive em Berna. É através de Jack que Brutsche começa a contar uma história profundamente pessoal. “Uma história que nunca me abandonou”, como anuncia a narração de abertura do filme.
Las Toreras narra – e, ao fazê-lo, esforça-se para desvendar – a história complexa, as consequências multifacetadas e os efeitos emocionais que atravessam as fronteiras de um evento traumático singular na vida de Brutsche: em 1987, quando ela tinha apenas dez anos, sua mãe Carmen, de origem espanhola, suicidou-se em Zurique.
Sofrimento mental, machismo suíço
Um suicídio tende a lançar uma sombra longa e irregular sobre as famílias e o de Carmen não foi exceção: na verdade, mesmo mais de três décadas depois, continua sendo um tabu doloroso em ambos os lados da família de Brutsche.
De um lado, está a parte suíça – mais notavelmente o pai de Brutsche, Paul, e o seu irmão mais velho, Juan Pablo – que se lembram de uma esposa e mãe amorosa e de espírito livre, que gradualmente foi acometida por uma doença mental hereditária.
Do outro lado, aparecem os irmãos de Carmen – o de calmo Ángel, o abrasivo Juan José e a agressiva Eloísa – cuja própria memória está imbuída de uma raiva inconfundível direcionada a Paul e ao país para onde se mudou sua falecida irmã.
Na Espanha, eles narram terem convivido com Carmen como uma irmã divertida, que depois emigrou para os climas mais frios e para a cultura desconhecida da Suíça, casou-se com um marido irresponsável e teve seu espírito esmagado pelo “machismo na Suíça”, como diz Juan José para Brutsche. A cineasta, surpresa, a certa altura, demonstra que isso lhe parece totalmente errado.
Não é difícil entender por que, exceto por algumas visitas de Brutsche ao longo de 25 anos, os dois lados da família estão tão distantes. Quando lhe pergunto sobre a sua relação com a família espanhola antes das filmagens, ela diz que, tendo visitado regularmente a Espanha quando criança, “ [o país] nunca abandonou totalmente o seu domínio sobre mim”.
Assim, as opiniões contraditórias sobre a morte de Carmen eram algo que Brutsche não queria deixar sem solução: “Eu queria aprender sobre a ‘perspectiva espanhola’, ‘o outro lado’, por assim dizer – e mostrar-lhes a perspectiva suíça. Estavam faltando grandes peças do quebra-cabeça de ambos os lados da família.”
Refletindo sobre a mudança na relação familiar causada por Las Toreras, Brutsche sublinha que o documentário, em última análise, a ajudou a compreender melhor a narrativa contrária de seus familiares espanhóis. “A doença mental da minha mãe deixou uma pilha de vidros quebrados, então posso ver como isso levou a mal-entendidos e à circulação de informações falsas”.
Além disso, graças à descoberta dos cadernos e diários da mãe, que permitiram a Carmen “falar por si mesma e tornar visível a sua vida interior”, o filme de Brutsche facilitou uma reconciliação familiar há muito adiada.
Choque cultural
As diferenças socioculturais também podem ter sido responsáveis por algumas das diferenças de perspectiva dentro da família, que já foram muito agudas. Carmen veio de uma família onde falar sobre doenças mentais era desencorajado; ela também atingiu a maioridade na Espanha franquista, onde ter uma doença mental carregava estigma social ainda maior do que hoje. Entre estes fatores e a falta de informação disponível aos seus irmãos, “parecia mais lógico atribuir estes problemas psicológicos a fatores externos”, Brutsche diz.
Por outro lado, “as pessoas na Suíça identificaram, com base no seu conhecimento da história familiar de Carmen, a sua propensão hereditária para a doença mental como a principal razão” de seu sofrimento emocional.
Mas Las Toreras não é apenas um exemplo de Brutsche fazendo a ponte entre a Suíça e a Espanha: como sintetizado pela figura de Jack Torera, o filme também conecta os diferentes mundos que a diretora habita.
A cineasta como performer
Embora Brutsche seja formada em cinema pela Universidade de Artes de Zurique, talvez a mais proeminente incubadora de talentos artísticos da Suíça de língua alemã, sua decisão de transformar a história de sua família em um documentário longa-metragem emocionalmente sensível não parece uma escolha óbvia – considerando que a artista é mais famosa por sua performance musical intransigentemente humorística, orgulhosamente teatral e inovadora.
Brutsche toca em duas bandas de rock (cujos videoclipes ela escreve, dirige e edita regularmente): o grupo de garagem suíço The Jacket, no qual Jack Torera é uma presença constante, e o The Sex Organs – um projeto musical em dupla, em que ela e o holandês Bone se vestem como alienígenas em forma de vagina e pênis, respectivamente.
Ela também mantém uma carreira solo, principalmente com shows individuais, que combinam temas de emancipação feminina e rebelião antiautoritária com a estética de gênero de The Jackets e The Sex Organs. Em The Moustache Princess, de 2010, conta a história das (des)aventuras de uma infeliz estrela pop com seus pelos faciais, enquanto em The Rebel Sperm, de 2013 , segue um espermatozóide liderando uma revolta escrotal tentando ser mais esperto que um DIU anticoncepcional.
Mas onde alguns podem ver uma descontinuidade entre a irreverência rebelde do rock’n’roll desses projetos e a narrativa mais ostensivamente sombria de Las Toreras, Brutsche vê uma continuação lógica: “A imagem da minha mãe, uma mulher que muitas vezes sonhou com uma vida diferente, com viida e objetivos inatingíveis, sempre aparece nos temas que abordo em meu trabalho. Através da minha arte, pude me conectar com ela e encontrar uma maneira positiva de lidar com seu destino.”
O envolvimento da grandiosa Jack Torera no filme ressalta isso: “Eu absolutamente não queria fazer apenas mais um documentário deprimente sobre suicídio. Queria mostrar uma minha abordagem positiva e lúdica para esta história dolorosa e enfatizar a ideia de que é possível extrair força criativa da tragédia.”
E Las Toreras é um exemplo emblemático. Através dele, Brutsche conseguiu reunir as duas partes da sua família e, depois de anos sem se falarem, envolvê-las num diálogo catártico que alcançou a reconciliação que antes parecia impossível. “Todo o meu trabalho até agora me levou a este filme”, resume.
(Adaptação: Clarissa Levy)
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