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Clarice Lispector na Suíça: “Berna é um túmulo!”

Clarice com esquis
St Moritz, 1948: a vida privilegiada de Clarice Lispector em Berna, na condição de mulher de diplomata, lhe era uma gaiola dourada. A passagem de três anos pela Suíça não deixou saudades, mas ao menos rendeu estofo para seu terceiro romance, "A Cidade Sitiada" (1949). Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

A escritora brasileira Clarice Lispector faria hoje 100 anos, mas só foi descoberta no estrangeiro recentemente, décadas depois de sua morte - e este ano sua obra completa é finalmente publicada em inglês e alemão. Sua passagem pela Suíça entre abril de 1945 e o final de 1948, marcou um ponto fundamental em sua carreira.

Clarice Lispector viveu na Suíça entre abril de 1945 e o final de 1948. Casada com o diplomata Maury Gurgel, seu primeiro marido, ela deixou o Brasil em 1944 para desembarcar em Nápoles, na Itália. Na cidade devastada pela guerra, Clarice Lispector trabalhou num hospital da Cruz Vermelha. Dali para Berna foi um salto no  escuro. A transferência do marido, vice-cônsul, acentuaria uma reviravolta em seu comportamento.

As cartas escritas às irmãs Tania e Elisa, ambas no Rio de Janeiro, foram a válvula de escape para uma realidade dura e fria, em muitos aspectos, ou idilíaca e onírica em poucos outros. Ela tinha 24 anos quando chegou na Suíça. O país logo se transformaria numa espécie de filtro para seus sentimentos e observações antropológicas em terra estrangeira.

Fui lendo na rua mesmo, e todo o carinho que você me fazia eu bebia rápido, rápido porque já há muito tempo você não regava esta planta suíça. Dei logo flores e passei um dia de sol.”, escreveria Clarice Lispector, de Berna, em 19 de junho de 1948, para a irmã Tania Kauffman, no Rio de Janeiro. Na missiva, uma das últimas do seu período suíço, numa aparente crise de melancolia, Clarice identificava-se como uma planta longe dos trópicos e mal adaptada ao clima temperado dos Alpes.

Berna, 7 de julho  1946

“(…) Ontem choveu, o que bastou para que a temperatura descesse enormemente, e de vestidos de verão passei a pôr lã. Como se vê não é só no Rio que o clima é instável. E aqui acrescente-se a dureza do clima. A história do pessoal aqui ter bocio (nr, papo, papeira) é uma realidade alarmante. Vocês se sentam num bonde com 8 mulheres, e três tem bocio avançado e metade do resto tem um ligeirissimo começo que eu já sei distinguir. É a falta de iodo no ar…Temos como sempre ido muito ao cinema, para ver drogas. Enquanto em Genebra, Lausanne, passam filmes bons, aqui em Berna são raros. Dizem que é porque os bernenses são muito avarentos e filmes bons custam mais caro.”

Carta de Clarice Lispector
Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

Clarice implicou com Berna e foi quase ódio à primeira vista. No caso de receber uma hipotética visita da irmã, afirmaria, numa carta datada de 23 de junho de 1946: …a primeira coisa que faria seria não deixar você em Berna e ir depressa com você a Paris”. E ela não mudaria de ideia ao longo da estadia, como neste relato, dois anos depois: Berna é triste, extremamente silenciosa, tem apenas cinemas”, (7 de outubro de 1948).

De fato, a vida cultural na capital helvética parece ser a única coisa suportável na cidade. Na carta com data de 1 de julho de 1946, Clarice relata: “Estou bem de saúde, só cansada, sem motivo. Vai haver vários concertos na Catedral com musica de Bach, Hayden, Mozart, cantado. Se eu fosse mais simples aproveitaria de tudo mais. O pior é esse hábito mentale em que caí de querer transformar tudo em ouro.” (3)

Carta de Clarice Lispector
Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

Berna é um túmulo

“Os anos passados em Berna foram difíceis para Clarice Lispector principalmente pela ausência da família e de amigos, como também pela não adaptação à cidade, que descreveu como uma espécie de túmulo. Há, neste período, intensa troca de correspondências com uma variedade de escritores e intelectuais brasileiros, dentre eles Manuel Bandeira, Lucio Cardoso, Fernando Sabino e João Cabral de Melo Neto (os dois últimos vivendo fora do Brasil), nas quais a escritora toca em questões relacionadas a sua situação de estrangeira“, afirma o pesquisador brasileiro e mestrando em literatura brasileira, Marco Antonio Notaroberto, no artigo publicado em 2017, Nunca te esqueças que venho dos trópicos: Clarice Lispector e uma cidade varada por Berna”

A swissinfo.ch encontrou o pesquisador no pátio interno do Instituto Moreira Salles (IMS), no bairro da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. O lugar foi a antiga residência da homônima família de banqueiros.

O local, cercado pelas sombras de jambeiros, paus-mulatos e mangueiras, habitado por micos e passarinhos, é o guardião da correspondência pessoal da escritora brasileira de origem ucraniana. Este jardim paradisíaco, enraizado na Mata Atlântica e criado pelo paisagista Burle Marx, adorna o centro de documentação.

“O que lhe acontece em Berna, como escritora, é exatamente isso: um trabalho de artesanato de refugiar-se na língua e manter contato com a terra, tanto escrevendo correspondências quanto romances”, revela Marco Antonio Notaroberto sobre a inquilina da rua Ostring 58, seu primeiro endereço bernense.

“O IMS tinha recebido os arquivos de um dos filhos dela. Por alguma razão, a família não quis que eles continuassem na Fundação Rui Barbosa. O material precisava de uma catalogação para compor o acervo virtual. O meu trabalho era ler toda a correspondência, pegar alguns pontos específicos e seguir um protocolo. Isso foi entre 2015 e 2016. Depois disso, surgiu a pesquisa, achei muito interessante a tristeza, são cartas muito tristes mesmo, pesadas”, conta o pesquisador.

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Manuseando a correspondência

A swissinfo.ch teve acesso às cartas suíças enviadas aos parentes. Numa pequena sala, perto da piscina, as frágeis folhas amareladas pelo tempo são apresentadas em duas caixas de papel nobre. E podem ser manuseadas apenas com luvas de látex, em silêncio reverencial, com os apetrechos eletrônicos guardados num escaninho no lado de fora. Anotações são feitas apenas com lápis em papel branco.

O olhar de Clarice Lispector é pouco tolerante com a sociedade suíça. Por outro lado, encanta-se com a paisagem desta “ilha” de tranquilidade, cercada por uma Europa arrasada pela guerra recém terminada.

A influência do meio ambiente e a disparidade de mentalidades criariam dificuldades na adaptação de Clarice Lispector à sua vida de nômade, no exílio voluntário, ao contrário do exílio político – a familía escapou da perseguição antissemita da Ucrâina, em 1920, levando-a com poucos meses de vida ao Brasil e ainda com o nome de Haia Pinkhasovna Lispector.

Na carta de 17 de julho de 1946, para a irmã Elisa, a escritora compara Nápoles com Berna e descreve a capital helvética como um cartão postal: “…Também é 8 ou 80;…em Nápoles uma vida onde nenhum minuto se respirava sozinha, ou aqui onde se respira mesmo sozinha… Mas estou contente. A Suíça é sólida e quando a gente abre os olhos de manhã sabe que ela está ali onde deixou. Não tem o caráter de terra magnânima como a Itália, por exemplo, ou a França, onde as coisas são tão expontâneas e variadas que terminam dando certa confusão ao ambiente; aqui cada coisa tem o seu lugar, há silêncio e dignidade. Dignidade excessiva, às vezes.

 A leitura da carta de 17 de dezembro de 1946 revela a sua admiração pela paisagem. “Com o carro já fomos às cidadezinhas de Thun e Bienne. Estava nevando e muito bonito. Na Suíça, em toda a parte há montanhas e lagos – e isso dá – uma paisagem muito bonita. Quanto ao mais está igual”.

Tanta beleza natural não ofuscava a apatia que acompanhava a sombra de Clarice Lispector.

Carta de Clarice Lispector
Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

Atitudes antidiplomáticas

A contracapa da sua vida demonstrava uma impaciência no trato social. Na missiva de 9 de novembro de 1948, quase no fim do seu período no país, ela perde as estribeiras: Os suíssos (nr: escritura original) são tão lentos que desesperam uma pessoa: entrei um dia desses numa farmácia e perguntei:  a senhora pode me informar se é nesta rua que há a Sociedade Anônima de Anúncios suissos para eu botar um anúncio para arranjar casa onde morar? (é assim que eu falo com eles, bem explicado) Resposta: Aqui na farmárcia não se botam. Não pense que era indelicadeza, era por burrice apenas.”

Marco Antonio Notaroberto conta que “Berna tinha uma questão com ela. Talvez porque ela ficava muito tempo isolada, dentro de casa, ela não tinha amigos. Nas cartas, ela conta que nunca conseguiu concretizar a Europa em um amigo. Ela nunca conseguiu se relacionar muito bem. E Berna foi difícil. Pelo menos nas cartas, ela transmite uma sensação de tristeza mesmo, de desenraizamento”.

Os trechos das cartas abaixo revelam o “banzo” de Clarice Lispector da terra natal.

“Para mim não existem nunca lugares, existem pessoas. E acima de todas as pessoas do mundo está você que eu não comparo com ninguém…que vontade de abandonar tudo isso que não vale nada para mim e voltar para o Brasil”.

Berna, 29 de janeiro de 1947

“Sonhei que havia um trem Brasil-Paris e que você vinha passar duas horas comigo. Minha felicidade era tão grande. Eu corria para mostrar algumas coisas a você, e proteger você contra todos. Não me obrigue a lhe escrever dizendo como minha vida está desenraizada, como não vejo futuro, como é gratuito viver na Suíça ou em outro lugar, como se pudesse viver em qualquer época e em qualquer lugar.”

Berna, 24 de julho de 1947

“Aqui, um ambiente menos sufocante, em que se deve interpretar as coisas que as pessoas dizem porque sempre pode haver uma intenção oculta, uma indireta, uma vontade de humilhar e sair vencendo. Maury diz que devo fazer o mesmo e não liga“ [trecho escrito depois de uma das inúmeras recepções diplomáticas]

Mas Clarice Lispector se incomodava, sim. E muitas vezes representava-se como uma atriz, na frente de convidados importantes. Diante de certas afirmações colocava em dúvida seus sentimentos pelo interlocutor.

Ao mesmo tempo, ela valorizava sua brasilidade como podia. A relação com “madame Strasser”, uma amiga suíça das altas rodas, é exemplar. Clarice Lispector frequentou “madame Strasser”, uma espécie de anfitriã local, em Berna. Mas integrou-se pouco.

Em 2 de janeiro de 1947, a escritora relataria às irmãs seu “batismo de nevea caminho da casa da amiga: “Quando saí tinha nevado muito, estava uma beleza. E eu levei meu batismo de verdadeira neve: levei um daqueles tombos que nem passarinho baleado. Se não fosse a Rosa (nr: a empregada) me segurar um pouco, minha cabeça bateria com força no chão… A casa de Mme Strasser fica junto da Catedral… Eu dançando de veludo decotado na Suíça, tico-tico no fubá, ano-novo…que mistura estranha.”

Carta de Clarice Lispector
“(A Rosa está agora dizendo que há aqui suíços tão sabidos que até parecem judeus…). Bom.” A origem judaica de Clarice não era assunto essencial em sua obra, mas esse seu breve dar-de-ombros (“… Bom.”) ao comentário antissemita dá uma luz sobre sua atitude a respeito do tema. Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

A exuberância, o silêncio e os “sorrisos de paisagem” se alternavam como auto-censura e minimizavam o risco de constragimentos. Os desabafos escorriam como rio em cheia nas cartas às irmãs. Um deles seria contra a própria “madame Strasser”, alguns meses depois da festa pela passagem do ano.

“Minhas queridas,

(…) parece que ela criou a Suíça no colo. Não posso dizer como é bonita esta paisagem, sem que ela me diga com um ar inimitável de modéstia chata: ah oui. Se ela soubesse que penso isso dela choraria por um mês. Mas acho, sinceramente, que basta mentir, mentir, mentir, como faço todos os segundos desta vida.”

Filho e livro

As inquietudes se refletiriam em suas obras, principalmente no livro “A cidade sitiada”, concebido inteiramente neste clima bernense de alma claustrofóbica, assim como o seu primeiro filho, Paulo. Ela daria a luz às duas criaturas no último ano de sua longa temporada.

Clarice Lispector se expõe contra o jeito suíço de ser, ao máximo, durante a maternidade. O nascimento do filho, Pedro, a indispõe com uma governanta suíça. O conflito terminaria com a demissão da “nurse” pois ela “exigia de nós um silêncio de hospital, como a criança está sempre na peça onde haja mais claridade, Maury e eu vivemos nos transportando deu um lado para outro…”, como se queixa na carta de 7 de outubro de 1948.

O argumento voltaria na correspondência de 9 de novembro de 1948. “Despedi a nurse, que alívio. A outra só no dia 18 e parece formidável. A chata saiu, além de seu caráter bem suisso-alemão no pior sentido, tinha os seus próprios e fortíssimos planos, e um coração muito ruim. Como eu estava escrevendo agora a Elisa, ela me odiava simplesmente. E falou mal de nós a todos os fornecedores e vizinhos, encrencou com a Rosa com uma vizinha que não a cumprimentou mais. Foi uma víbora que tivemos em casa, histérica além do mais. Aqui vem parece ótima. Digo “parece” porque já estou assustada. Mas ela tem uma cara tão simpática que é raro encontrar, entende logo o que se diz.”

Decifrando a personalidade 

Marco Antonio Notaroberto explica que a leitura das cartas ajuda a decifrar a figura misteriosa de Clarice Lispector. “No trabalho, as correspondências são lidas como literatura. Algo que evitei muito de afirmar na minha pesquisa foi qualquer traço da sua personalidade, da mulher Clarice Lispector. A gente lida com a escrita de si, o que ela escreve sobre si naquele momento. Não podemos afirmar se ela estava feliz ou triste. O que ela passa nas cartas de Berna é quase uma depressão mesmo, uma apatia, uma saudade muito grande. Mas quando ela viaja pela Europa, para outros lugares, como a Itália, Paris, ou até mesmo Lausanne, a energia da carta é diferente, talvez ela estivesse de férias”.

Jardimj do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro
Vista interna do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Antiga residência da célebre família de banqueiros, a casa foi projetada por Oscar Niemeyer no auge dos anos dourados do modernismo brasileiro, por onde trafegava Clarice Lispector tanto na vida social como na literatura Guilherme Aquino

Notaroberto prossegue: “eu já era leitor, mas as obras são um tanto herméticas às vezes, mas é uma desconstrução da linguagem, você não sabe o que está lendo, você sente mais que entende, é uma coisa estranha. Aí fui convidado para trabalhar aqui e a partir da leitura das cartas, numa escrita completamente diferente de romance, uma escrita artística, os romances começam a fazer mais sentido, e por serem tão bem construídos, acho que você tem que estudar para entender ou então para fruir de uma maneira mais leve. Eu acho que quando se sabe o que ela estudava e lia, pode-se criar chaves de leitura para entender aquilo”.

Perdida em traduções

O tradutor de Clarice Lispector para o italiano, Roberto Francavilla, professor de literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Gênova, elucida o enigma do estilo da escritora brasileira. Ele conta que “Claire Varin, uma pesquisadora canadense da obra de Clarice, indica o poliglotismo da escritora como a causa de seu estilo não canônico. A condição de imigrante da criança Clarice e da sua família (judeus ucranianos) provoca as dificuldades da escritora no aprendizado do português”.

O professor italiano concorda ao ver no idioma a busca pela sua identidade. “Para ela, a língua se torna uma conquista. Numa crônica, ela descreve o seu amor pelo idioma, ressalta o sentimento de luta que surge dentro de si durante a tentativa de dominá-la, como uma língua ainda em formação. A autora descreve o ato de escrever e de forjar a língua portuguesa como análoga à tentativa de domar um cavalo”, diz Francavilla, autor de duas traduções de Clarice Lispector – os romances “Água Viva” e “Um Sopro de Vida”, em fase de finalização para a editora Adelphi.

É bom lembrar que a escritora respirava as consequências do Modernismo, quando a própria língua portuguesa contamina-se pelo português popular, menos erudito e canônico.

Obra viva

Os romances de Clarice Lispector despertam o interesse de antigos e novos leitores. A prova disso é a publicação da obra completa da autora, em francês, pela Éditions des FemmesLink externo. A vida literária da escritora renova-se a cada leitura de suas histórias. Em quaisquer idiomas, o impacto é sempre o mesmo: letras que mergulham na existência profunda de todos, através de seus personagens. Letras que costuram a realidade escondida dentro do inconsciente coletivo.

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