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Nunca foi tão gostoso ser mulher

Elenco do filme Como nossos pais
Rosa (à esq.) em família: a mulher 'moderna' é uma acrobata social e emocional Cineworx

Mulher, esposa, mãe, dona-de-casa, profissional. O acúmulo de papéis e funções transformou o dia-a-dia da "mulher moderna” em uma infinita acrobacia, afetando as relações no interior do núcleo familiar com uma dosagem extra de cargas emocionais. Esse é o cotidiano de Rosa, interpretada pela atriz Maria Ribeiro, no longa “Como nossos pais”, de Laís Bodanzky, que estreiou ontem nos cinemas da Suíça alemã.


O argumento de “Como nossos paisLink externo” é relativamente simples.  Espelhando uma realidade bastante comum de mulheres de classe média urbana tentando equilibrar uma carreira profissional com as exigências do lar, Rosa ainda vive um casamento em crise e, como agravante, tem de lidar com a revelação súbita de um dramático segredo de família.

Seu marido, Dado, antropólogo militante pelos direitos indígenas e preservação da Amazônia, é um ausente no dia-a-dia e na criação das filhas, e reflete um modelo de jovem adulto de classe média branco mais engajado com causas globais do que com a efetiva aplicação de seus ideais no cotidiano doméstico. Dado é de fato um tipo genuinamente brasileiro, mas o personagem é facilmente identificável em diversos lugares, pelo que atesta a reação do público em outros países – inclusive na Suíça.

Filme para homens

swissinfo.ch acompanhou a diretora paulista Laís Bodanzky nas pré-estreias em Berna e em Zurique no início da semana, onde ela conversou com o público sobre os temas abordados no filme.

Segundo a diretora, em todos os debates que participou, no Brasil e no exterior, um comentário era sempre recorrente, o de que este filme não acrescenta nenhuma novidade para as mulheres, mas que deveria ser assistido pelos homens.

“Em todo casamento, marido e mulher partilham um cobertor pequeno que, historicamente, sempre cobriu o homem e deixou a mulher com a metade de fora. Hoje a coisa mudou, a mulher descobriu que pode puxar o cobertor para o seu lado e isso deixou os homens desconfortáveis, com frio, sem saber como negociar a nova situação”.  

Bodanzky concorda que o tema da negociação marital é central não só ao filme, como na provável totalidade dos casamentos e parcerias (e não só heterossexuais), mas lembra que há outras questões secundárias, e não menos definidoras, nessa equação. As relações entre mães e filhas, e também entre as próprias mulheres, por exemplo.

A diretora Laís Bodanzky
A diretora Laís Bodanzky: as mulheres vivem um momento histórico inédito, e o seu papel no imaginário coletivo também tem que mudar. swissinfo.ch


“É preciso ter em mente que as próprias mulheres introjetaram esse modelo em seu comportamento, deixando-se subjugar aos homens e cumprindo o papel lhes dado – geralmente como um ornamento, infantilizado, destituído de qualquer conteúdo que não seja ligado ao seu poder de sedução.” Essa infantilização, segundo Bodanzky, está também na dinâmica das mulheres entre si, criando um jogo de “falsas idiotas” em constante competição, incapazes de peitar e discutir assuntos pertinentes e relevantes para suas próprias vidas.

Talvez a relação entre mães e filhas possa dar uma chave para isso. Bodanzky cita um artigo do psicanalista ítalo-brasileiro Contardo Calligaris sobre o filme, em que ele desenha, em traços largos, um modelo de comportamento:

“A mãe passa a vida toda educando a filha a não ficar olhando para o pênis do pai – como se dissesse ‘esse pênis é meu’ – e quando a filha entra na idade fértil, em muitos casos isso coincide com o declínio ou o crepúsculo da fertilidade da mãe. A filha então se liberta da fixação no pênis do pai, e descobre que há dezenas de outros pênis no mundo. Enquanto isso, a mãe volta para casa e se dá conta que lhe sobrou apenas o pênis velho do pai. Com isso, ela começa a viver a vida da filha vicariamente, dando palpite sobre que tipo de namorado a filha deve ter, que tipo de vida, roupa etc.” Comparada a essa dinâmica, a relação com os maridos ou parceiros parece muito mais fácil de se lidar.    

“É você que ama o passado e que não vê”

Bodanzky também lembra o fato de que, especificamente no caso do Brasil, impera um comportamento extremamente individualista, independentemente de gênero, que possui raízes históricas e sociais mais profundas. “O Brasil é regido há 500 anos por uma classe masculina e eminentemente branca preocupada em salvaguardar, acima até mesmo de seus interesses de classe, seus interesses pessoais.” Vaidade, falta de empatia, e principalmente a falta de uma consciência coletiva ou de interesse pelo Outro são sintomas dessa mentalidade.

O título do filme, tirado da antológica canção de Belchior, não é nenhuma ironia para ela. “A canção foi a gênese do próprio roteiro, e o sentido é que o modelo familiar tradicional não comporta mais as nossas dinâmicas pessoais, não dá mais conta – se é que já deu – das necessidades e condições materiais do casal. Mas hoje podemos repensar esse modelo, e isso não significa simplesmente rejeita-lo, mas sim ‘customiza-lo’: pegar aquilo que nos serve, e jogar fora o que não.”

Por isso, entre outros motivos, a diretora acredita que o atual momento é promissor. “Vivemos finalmente uma ruptura, uma mudança real e verdadeiramente histórica”, diz ela. “As mulheres finalmente deram um basta a essa condição milenar, e agora estão tomando as rédeas de suas próprias vidas”. A queda vertiginosa do (ex)todo-poderoso produtor cinematográfico Harvey Weinstein por causa de acusações graves de assédio sexual é, segundo ela, um bom exemplo dessa mudança. E o número crescente de mulheres assumindo posições-chave atrás das câmeras é um sinal, positivo, na mesma direção. 

“Numa sociedade tão mediatizada como a que vivemos hoje, os modelos difundidos nos filmes e séries afetam profundamente o imaginário das pessoas.” Assim, essa atitude que se vê agora, partindo de Hollywood, já se espalha por diversos outros setores – nas empresas, na política, etc. Nesse sentido, para Bodanzky, “nunca foi tão gostoso ser mulher”.


Durante a conversa com o público em Zurique, Laís Bodanzky citou o “teste de Bechdel” aplicado para avaliar a presença ativa de mulheres em filmes e séries, e chamar atenção para a desigualdade de gênero na ficção.

O teste busca saber se, em uma obra de ficção, existe ao menos uma cena onde pelo menos duas mulheres, cujos personagens tenham nome na história (e não sejam simples anônimas), conversam entre si sobre qualquer assunto que não seja homens.

Menos da metade dos filmes conseguem passar nesse teste, assim que Bodanzky sugeriu que se devesse aplicar, em vez do selo de aprovação de Bechdel, um selo de reprovação. “Dessa forma a desigualdade de gênero ficaria muito mais explícita, pois o selo seria muito mais presente.”

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