Cartão cria consumidor transparente
Poucos mercados varejistas são mais monopolizados no mundo do que o suíço.
E para melhorar o controle, 4,5 milhões de cartões-cliente das duas maiores redes de supermercado fazem do suíço o consumidor mais transparente do globo: a alegria dos marqueteiros.
Comércio já foi uma atividade simples. Era a época em que o dono do armazém conhecia seus clientes. Muitos deles compravam regularmente os mesmo produtos e ainda tinham tempo para uma conversa fiada.
Os tempos mudaram e os estabelecimentos clássicos fecharam suas portas. No seu lugar, hipermercados foram abertos, oferecendo nos milhares de metros quadrados uma quantidade infinita de produtos. Como em formigueiros, os consumidores carregam suas compras pelos corredores dessas cidades em miniaturas.
Registrado, pago e colocado no fundo dos sacos, o produto vai embora sem que o cliente e comerciante troquem uma palavra. O trabalho das funcionárias nos caixas eletrônicos é frenético. As esteira rolante nunca pára.
Conhecer o bolso do cliente
Apesar da birosca do passado não ter mais nada a ver com os templos modernos de consumo dos dias de hoje, uma coisa não mudou: o comerciante precisa conhecer seus clientes.
Porém sua principal arma não é mais a simpatia de balcão, mas sim a tecnologia. E ela se concretiza na forma de um cartão magnético.
Na Suíça, 70% do mercado varejista é dominado pelas redes de supermercado Coop e Migros. Essa última é a maior das duas em termos de receita, com 600 filiais espalhadas por todo o território, seja nas cidades ou nos vilarejos de montanha.
Apesar da situação folgada de concorrência, as duas redes utilizam modernos métodos de marketing para fortalecer suas posições no mercado. O cartão-cliente é um deles. Na Coop ele se chama Supercard e na Migros M-Cumulus. Os dois têm algo em comum: fornecer dados detalhados sobre o comportamento do consumidor.
4,5 milhões de cartões
E como convencer o comprador a fazer parte do clube e dar cotidianamente seus dados pessoais? A resposta é simples: os marqueteiros decidiram atiçar o instinto de caçador dos suíços. Ao utilizar os cartões para fazer compras nos supermercados e lojas, o consumidor soma pontos. Depois eles dão direito a descontos e brindes diversos.
Coop tem 2,2 milhões deles em circulação e 1.500 lojas em todo o país. Quatro quintos das compras realizadas nos supermercados são feitas através do Supercard.
No caso da Migros, o cartão lançado em 1997 já alcança o número impressionante de 2,3 milhões. Assim como ocorre na versão do concorrente, o M-Cumulus também é utilizado por toda a família, e não individualmente como um cartão de crédito. Isso significa que um número ainda maior de pessoas utiliza o sistema, e com sucesso.
– Mais de 72% do nosso faturamento ocorre através do Cumulus, explica Christian Arpagaus, responsável no grupo Migros pelo programa.
O uso intensivo do cartão pelo consumidor é explicado não apenas pelas vantagens do sistema, mas também diversificação do império Migros. Além de ser supermercado, a rede também atua nos mais diversos setores do comércio com postos de gasolina (Migrol), material esportivo (Sportxx), livrarias (Exlibris), bancos (Migros Bank) e escolas (Migros-Clubschulen). Em qualquer uma das filiais é possível acumular os pontos.
Raio-X do cliente
Para cada franco suíço gasto nos caixas registradores, um ponto é acumulado na conta. De dois em dois meses calcula-se quanto cada cartão gastou. 500 pontos dão direito a cupons de descontos no valor de cinco francos, mil dão direito a dez francos e dois mil, o limite, a vinte francos de cupons.
O consumidor suíço adora colecionar as cartelas coloridas. E para que ninguém esqueça, os funcionários de caixa no Migros e Coop são orientados a repetir incansavelmente a pergunta: – “o senhor têm o cartão?”. São raros os casos daqueles que não tiram o precioso objeto do bolso.
Os dados registrados no computador vão parar em gigantescos bancos de dados. A diferença entre Coop e Migros é que a segunda registra também a lista detalhada de compras, horário, local e nome do cliente.
Essa quantidade incrível de informações é analisada por sofisticados programas de computador. Na Migros é utilizado o Teradata CRM, um software especializado em “customer relationship management”, ou seja, gerenciamento de relacionamento com o cliente.
Consumidor classe “A”
Nos computadores na central em Zurique chegam milhares de informações por segundo, que são armazenadas e depois depuradas através de complexos cálculos estatísticos e terminam em tabelas coloridas. Elas são um instrumento precioso para na estratégia de promoções ou marketing direto. “Cada produto tem um responsável, que através do software vai analisando as vendas”, revela Arpagaus.
– O programa nos permite também classificar os consumidores em diferentes grupos. Existe, por exemplo, o grupo A, que apesar de corresponder apenas a 10% dos compradores, é responsável por 30% do nosso faturamento. São pessoas que freqüentam nossas lojas quase todos os dias e gastam até 400 francos por semana. São eles que queremos atingir através de ações de marketing direto.
O contato com o usuário do cartão Cumulus é simples e efetivo. Clientes que compram regularmente comida de gato podem receber correspondência quando o produto está em promoção; quem consome muito nas lojas de esporte do grupo é considerado ativo e se torna interessante, por exemplo, para as promoções de produtos “light” ou pacotes turísticos; clientes classe “A” são convidados para a abertura de uma nova filial, com direito à coquetel e salgadinhos.
A utilidade do banco de dados é imensa e, se os custos de manutenção do programa são altos, o retorno é garantido.
– Não posso dizer quanto gastamos, mas o cartão-cliente se transformou num instrumento muito importante para a estratégia de marketing da empresa – analisa Christian Arpagaus.
Big brother is watching you!
O outro lado da medalha dos cartões-cliente é a questão sensível do dados pessoais. Quem garante que eles não serão utilizados de maneira incorreta? Quem pode impedir que eles não sejam vendidos à terceiros? Arpagaus se apressa em explicar:
– No contrato com os clientes garantimos que os dados só podem ser compartilhados com as empresas do grupo Migros. Ao mesmo tempo, as leis de proteção dos dados pessoais são rigorosas na Suíça. E para reforçar, ainda adotamos o selo de garantia “good privace”, uma prova da nossa política de sigilo absoluto.
Porém, quem ler com atenção nas letras miúdas dos contratos de cartão-cliente irá descobrir que existem exceções como investigações policiais. Nesses casos a empresa é obrigada a abrir seus bancos de dados para as autoridades, mas somente quando os pedidos são assinados por um juiz.
No ano passado a Migros recebeu mais de cem desses pedidos. A grande maioria foi para ajudar nas investigações de pessoas que tentam ser espertas ao depositar lixo sem pagar as devidas taxas (um selo que custa em média 1,20 dólares), mas não o suficiente para esquecer de tirar as notas fiscais de compras feitas em supermercados dos sacos. Como os policiais descobrem os malfeitores? Os números encontrados revelam a identidade e endereço dos proprietários dos cartões-cliente.
Além do lixo, os bancos de dados também podem ajudar a esclarecer crimes mais graves. Um deles foi incêndio provocado por um piromaníaco num orfanato em Berna, em 2002. Ao esquecer no local do crime uma ferramenta comprada num supermercado Migros, a polícia iniciou uma ação de busca. A empresa teve de entregar os dados pessoais de 113 clientes considerados “suspeitos”.
O responsável pelo programa Cumulus na empresa confirma que o interesse pelo banco de dados tem aumentado. Além das autoridades judiciais, também secretarias de finanças ou prefeituras batem na porta da empresa para solicitar dados privados sobre os proprietários de cartões-cliente.
– O caso mais estranho foi de um funcionário de um órgão público queria saber por que uma pessoa estava gorda demais, já que ela recebia dinheiro do governo através da ajuda social- conta Arpagaus. Nesse caso o pedido foi rechaçado, assim como outros que não foram autorizados por juízes.
A questão, que vale também para qualquer país do mundo, é saber até quando a lei vai proteger o consumidor transparente do olhar indiscreto de terceiros.
swissinfo, Alexander Thoele
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