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Violência sexual na guerra é prática tão antiga quanto

Imogen Foulkes

O estupro e a violência sexual no contexto de uma guerra estão entre nós há tanto tempo quanto a própria guerra, ou seja, desde sempre. Esse crime, contudo, não atraía até bem recentemente a mesma indignação, quanto menos a mesma legislação e execução processual que outras atrocidades associadas à guerra.

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Quando as primeiras Convenções de Genebra foram esboçadas, o estupro não era explicitamente mencionado. Nos julgamentos de Nuremberg, que sucederam à Segunda Guerra Mundial, ninguém foi processado por estupro, embora o tribunal tenha ouvido depoimentos angustiantes sobre casos afins.

Somente em 1949, com a Quarta Convenção de Genebra, é que o estupro e a prostituição forçada passaram a ser oficialmente proibidos. E, mesmo depois disso, quando relatos horríveis de estupro em massa vieram à tona na Bósnia, nos anos 1990, houve um mal-entendido quase deliberado sobre o que estava acontecendo. Os casos de violência eram por vezes simplesmente retratados como incidentes isolados ou aleatórios envolvendo soldados que se deixavam levar.

O tribunal do Genocídio de Ruanda de 1998 e o trabalho árduo da então juíza (e mais tarde Comissária de Direitos Humanos da ONU) Navi Pillay foram essenciais para determinar que o estupro sistemático e a violência sexual não seriam “apenas” um crime sexual e uma agressão violenta, mas também uma arma de guerra. O tribunal introduziu o termo de referência “estupro genocida” para definir ataques sistemáticos destinados a destruir uma determinada comunidade.

Poucas acusações judiciais – e quanto às(aos) sobreviventes?

A inclusão desses crimes em nosso corpo de leis internacionais é bem-vinda e trouxe mais atenção e conscientização sobre a violência sexual relacionada a conflitos armados. Mas, ainda assim, foram conduzidos poucos processos judiciais. Enquanto isso, quem sobrevive à violência sexual enfrenta uma série de problemas, desde traumas psíquicos até problemas de saúde, estigmas e isolamento.

Nesta semana, no Inside Geneva, o último episódio da nossa série de perfis traz uma conversa com Esther Dingemans, diretora executiva do Global Survivors Fund, uma ONG sediada em Genebra e dedicada à reparação de sobreviventes de violência sexual.

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Women protest in Lausanne in 2017 about harassment and sexual violence against women

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Uma em cada cinco mulheres suíças foi vítima de violência sexual

Este conteúdo foi publicado em Um estudo realizado pelo instituto gfs.bern para a AmnestyLink externo, revelou que 22% das mulheres com mais de 16 anos foram sujeitas a atos sexuais não consensuais e 12% tiveram sexo contra sua vontade. “Os resultados da pesquisa são chocantes. Eles revelam que os casos registrados em estatísticas policiais são apenas a ponta do iceberg”, disse…

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Dingemans iniciou sua carreira como assistente social em seu país de origem, a Holanda, trabalhando com refugiados. Logo a seguir, decidiu que queria trabalhar em campo. De Darfur, passando pela República Democrática do Congo, até a Síria, ela foi se deparando cada vez mais com mulheres que haviam sido submetidas à violência sexual.

“Essa é uma arma de guerra”, diz ela. “Eu diria que é uma arma de destruição em massa, que está realmente maximizando danos”, completa.

O que significa reparação?

O que faz, de fato, a Global Survivors Fund? Pouco depois de voltar de Gaziantep, na Turquia, onde esteve trabalhando com refugiados sírios, Dingemans relata a respeito de um projeto de apoio a mulheres, meninas, homens e meninos vítimas de estupro – alguns praticados pelo grupo Estado Islâmico, explica ela, mas a maioria pelas forças sírias, dentro de centros sírios de detenção.

A Global Survivors Fund trabalha com governos, para incentivá-los a oferecer reparação, embora isso, segundo Dingemans, “não vá acontecer” tão cedo na Síria. Por enquanto, o projeto está oferecendo às vítimas várias formas de suporte, desde apoio psicossocial até exames de saúde. Dingemans ressalta que o auxílio financeiro é apenas uma forma de reparação e, para muitas mulheres, não é nem de longe a primeira necessidade, nem a mais importante.

“O que realmente importa”, explica ela, ”especialmente para sobreviventes de violência sexual, que muitas vezes é cercada de tanta vergonha e estigma, é o reconhecimento de que houve um dano e de que elas não têm culpa alguma disso”, completa.

Ouvir os relatos de Dingemans desperta indignação. As mulheres não são apenas submetidas a uma terrível violência sexual, como também, em muitas comunidades, inclusive nas mais desenvolvidas, podem ser submetidas à humilhação pública, relegadas ao ostracismo e até mesmo abandonadas por suas famílias e comunidades.

O estigma é tão forte, diz Dingemans, que muitas mulheres nunca contam a ninguém o que aconteceu com elas, agravando os possíveis riscos à saúde e tentando até mesmo esconder gravidezes resultantes de estupro.

”As sobreviventes duvidam de si mesmas. A maioria das vítimas de violência sexual sempre vai se questionar. Será que a culpa é minha?”

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Sem vergonha, sem culpa

As etapas iniciais seguidas por Dingemans e colegas, de reconhecer o dano causado e insistir com as(os) sobreviventes de que as vítimas não são de forma alguma culpadas pela violência infligida a elas, podem ser o primeiro passo para a cura.

A partir disso, as mulheres são então incentivadas a seguir o caminho da reparação por conta própria. Para as escolares nigerianas sequestradas pelo grupo extremista islâmico Boko Haram, que sobreviveram a meses de escravidão e violência sexual, uma das formas essenciais de reparação foi o direito de voltar à escola.

O Boko Haram sequestrou essas meninas, em primeiro lugar, porque seus apoiadores não queriam garotas nigerianas aprendendo valores “ocidentalizados” ou, de fato, recebendo qualquer tipo de educação.

Retornar à escola foi, para elas, como explica Dingemans, “uma espécie de desafio”, provando que o Boko Haram não havia vencido, nem apagado suas esperanças e seus planos para o futuro.

E o futuro?

Dingemans concorda que, no futuro, o ideal seria obter sucesso na prevenção da violência sexual relacionada a conflitos armados. No entanto, não vivemos, nem nunca viveremos, em um mundo ideal. Por isso, ela defende um enfoque maior no fim da impunidade: homens que infligem essa forma de violência deveriam contar com acusações judiciais por crimes de guerra.

Isso, contudo, leva tempo e requer vontade política. Neste momento, o que é possível é a reparação multifacetada, na qual Dingemans e colegas trabalham.

Segundo ela, as vítimas precisam “ser ouvidas, compensadas. É preciso permitir que as pessoas reconstruam suas vidas. Estamos obtendo ganhos, mas ainda há muito trabalho a ser feito”, conclui.

O trabalho feito pela Global Survivors Fund é exemplar. Ouça nossa entrevista completa no Inside Geneva para saber mais.

Adaptação: Soraia Vilela

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