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Os conflitos estão ‘tomando novas formas’

AFP

O presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Peter Maurer, está tentando fazer com que a organização fique mais transparente. Em entrevista para a swissinfo.ch, ele fala sobre os desafios de trabalhar na República Centro-Africana e na Síria.

swissinfo.ch encontrou-o na sede do CICV em Genebra, após ele ter realizado uma extenuante viagem de operações de campo e reuniões, desde janeiro, na Síria, Iraque, Sudão do Sul e República Centro-Africana.

No ano passado a Cruz Vermelha comemorou 150 anos de existência. Em 2014,  comemora outro sesquicentenário, o da assinatura da Primeira Convenção de Genebra, a pedra fundamental de todo o direito humanitário internacional.

Peter Maurer nasceu em Thun, na Suíça, em 1956. Estudou História e Direito Internacional em Berna e recebeu o título de PhD.

Ele entrou para o service diplomático suíço em 1987 assumindo diferentes funções em Berna e em Pretória, na África do Sul, antes de ser transferido para Nova Iorque como observador permanente da missão suíça junto às Nações Unidas. Mais tarde ele se tornou embaixador e representante permanente da Suíça na ONU.

Em 2010, ele se tornou Secretário de Estado das Relações Exteriores da Suíça, posto que ele manteve até ser nomeado presidente do CICV, no dia 1º de julho de 2012.

swissinfo.ch: O senhor acabou de chegar da República Centro-Africana, onde a situação é muito séria. Quais são as prioridades?

Peter Maurer:  Há várias coisas que precisam acontecer e que não fazem parte das responsabilidades da Cruz Vermelha. Nós encorajamos outros agentes a se engajarem. Reforçar a presença de segurança internacional é uma delas. Em um país onde não existe atualmente nem exército  nem polícia operantes, a segurança tem que ser garantida através de uma presença internacional confiável. Eu encorajaria países das Nações Unidas a se unirem em uma operação confiável  que fortaleceria a contribuição das forças de manutenção de paz africanas e francesas.

Precisamos de mais esforços sérios em favor do desarmamento. Não tem acontecido muita coisa  neste sentido no momento. Por parte do CICV, precisamos de mais esforços para regulamentar o sistema legislativo e judiciário.

A República Centro-Africana necessita principalmente de um processo político abrangente e confiável que aumente a credibilidade do país e faça com que a comunidade internacional invista nas medidas de estabilização necessárias.

Estamos em plena fase de transição. Praticamente não existem estruturas governamentais cuidando de saúde, água e saneamento. Dezenas de milhares de pessoas estão desalojadas por todo o país.

swissinfo.ch: Que mudanças a Cruz Vermelha pôde testemunhar desde a resolução unânime do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 22 de fevereiro, que exigiu a passagem rápida e segura para a ajuda humanitária na Síria?

P.M.: A dinâmica geral não mudou apesar dos esforços diplomáticos e da resolução do Conselho de Segurança da ONU. A situação ainda é difícil e desafiadora, as necessidades só aumentam , há muitass pessoas deslocadas e grandes preocupações humanitárias.

Não há provas de que a violência tenha aumentado ou diminuído. Mas as operações militares continuam, as pessoas continuam a ser deslocadas e acabam ficando presas entre as frentes de batalha. Conseguir chegar a estas pessoas é um grande desafio. As necessidades são enormes e as possibilidades de atendê-las são como gotas no oceano.

Reconheço que há progresso em algumas áreas. Desde janeiro, temos realizado algumas operações nas áreas tomadas. Conseguimos enviar um comboio significativo até  Barzeh, conseguimos vistos para algumas regiões importantes, que nos deixaram trabalhar, não apenas fora de Damasco e Aleppo. Também conseguimos a presença da Cruz Vermelha em Homs, Hama e Tartous. Conseguimos dar alguns passos e realizar importantes progressos – estamos atendendo mais pessoas hoje do que há dois meses –, mas o problema é que as necessidades também estão aumentando muito, de forma que permanece uma grande lacuna. Esse é o nosso grande desafio.

swissinfo.ch: Durante os dois anos à frente do CICV, o senhor tem tentado implementar um novo modelo de gestão, pedindo que as pessoas lhe chamem pelo primeiro nome, em vez de lhe chamarem de ‘presidente’. Por quê?

P.M.: Eu não tenho uma ideia fixa de liderança. Eu sou quem eu sou. Fui escolhido para liderar esta organização e quero fazer isso de uma maneira que não seja fundamentalmente diferente do meu jeito de ser. Do contrário não se consegue ser um presidente ou um lider confiável.

Acho que vivemos em uma época em que as interações entre os governos e a gerência da organização estão mais fluidas – não apenas nesta organização, mas em geral – e isso é importante. Precisamos de organizações ágeis, que desenvolvam de forma dinâmica o seu papel e os processo de tomada de decisão. E é esta a ideia por trás de uma forma mais pessoal de trabalhar. Esta atitude combina com a minha pessoa e ao mesmo tempo é de grande atualidade para a organização.

swissinfo.ch: Maior transparência também parece ser uma nova meta, é o que sugere a sua nova conta no Twitter e a série de documentários sobre o trabalho dos funcionários do CICV em campo.

P.M.: Durante a História, a identidade de Cruz Vermelha foi muito influencidade pela credibilidade. Temos que nos compromoter a trabalhar sob sigilo quando necessário. Mas também temos que rever o modo como isso se aplica à instituição. Quando entrei para o CICV, constatei que havia uma série de coisas que eram consideradas confidenciais e que eu não considerava nem um pouco confidenciais.

Não significa que transparência e abertura estejam do lado oposto ao da confidencialidade, mas sim que sejam elementos que se complementam de maneira sensata.

Há boas razões para sermos mais transparentes em várias questões, para sermos mais assertivos e abertos em relação a nossas dúvidas e questionamentos. Não deveríamos ter a ambição de trabalhar escondidos em um quarto escuro e aparecer com uma solução pronta para o mundo. Este não é mais o mundo no qual vivemos. Vivemos num sistema humanitário internacional, onde há outras pessoas pensando a ajuda humanitária também. Temos que fazer parte deste processo de ideias e encontrar o nosso papel. Isso exige engajamento, parcerias e transparência, bem como atividades que, em determinados momentos e contextos, estejam fora dos holofotes e nas quais possamos trabalhar em silêncio.

swissinfo.ch: Ano passado o CICV comemorou 150 anos. Em uma entrevista o senhor declarou: “Mais do que uma ocasião para celebrarmos, este aniversário deveria ser um momento para refletirmos sobre o nosso futuro e para reafirmar nossa dedicação”. Que novas ideias o senhor teve neste ano de comemoração tão importante?

P.M.: Muitos elementos essenciais do trabalho do CICV nos últimos 150 anos permanecem verdadeiros e atuais. A Cruz Vermelha é uma organização que combina assistência, proteção, desenvolvimento de leis e trabalho de campo, estando próxima das vítimas e engajada com todos os agentes. Estes são nossos princípios operacionais, além da nossa neutralidade, imparcialidade e independência, que permanecem válidas até hoje.

Mas vivemos em uma época em que os conflitos estão tomando novas formas, com novos grupos agindo e com novas armas. O ambiente da ajuda humanitária está se modificando. Não somos os únicos que estão provendo assistência humanitária e proteção.

Durante o período de 2015 a 2018, vamos unir a tradição ao novo cenário. Certamente continuaremos a enfatizar o tema proteção e a definir adequadamente nossas parcerias – o que elas representam e onde estão os limites. Também abordaremos as novas formas de violência, as novas armas e os novos grupos que atuam. Tudo isso requer uma nova forma de pensar, pois não existe uma receita de como enfrentar estes desafios.

swissinfo.ch: Em 2014 há um segundo aniversário – os 150 anos da assinatura da Primeira Convenção de Genebra. Mas quando olhamos para conflitos como os da Síria, do Sudão do Sul e da República Centro-Africana, onde os hospitais e aqueles que estão tratando os feridos são regularmente atacados e onde se nega atendimento aos feridos, não poderíamos dizer que este instrumento legal tornou-se irrelevante?

P.M.: Estes fatos não significam que a lei não seja relevante. Apenas significam que os desafios continuam. Apenas nos mostram que temos uma dificuldade de adequação entre a realidade do campo de guerra e a lei. Não há a menor dúvida de que temos boas normas.

Estes fatos mostram que temos que encontrar novas maneiras de abordar os novos agentes e autores da violência e as novas situações, para fazer com que lei seja mais respeitada. Mas esta é uma questão de implementação e não uma questão sobre a relevância da lei. Pode ser que o CICV e outras organizações tenham subestimado algumas vezes o tempo, a energia e o esforço que se gasta para explicar o que significa exatamente a palavra “lei”.

Os princípios são bons, mas a situação atual nos mostra que temos que redobrar nossos esforços para que sejam compreendidos e respeitados.

Adaptação: Fabiana Macchi

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