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Por que a Medicina Legal na África precisa de impulsos?

Collage of forensic doctors and trainees in Switzerland and in Cameroon
Tidianie Mogue, na foto à direita, viajou para a Suíça em 2021 para fazer um curso de medicina legal voltado especificamente para profissionais africanos como ela. Illustration: Helen James / SWI swissinfo.ch

A ciência forense é essencial na busca pela justiça e na luta contra a impunidade. No entanto, muitos países da África têm poucos patologistas forenses em exercício. Um instituto médico na Suíça está trabalhando para mudar essa situação.

Nos dias em que precisa fazer uma autópsia, a médica legista Tidianie Mogue coloca seu equipamento de proteção – luvas, touca, jaleco e sapatilha descartáveis. O Hospital Central de Yaoundé, onde ela trabalha, talvez o maior de Camarões, nem sempre tem recursos para cobrir o custo desses instrumentos básicos necessários ao exercício de sua profissão.

“Cada profissional precisa lutar pelo material do qual precisa”, diz Mogue à SWI swissinfo.ch em uma chamada de vídeo. “”Às vezes pedimos às famílias [dos falecidos] que deem uma contribuição para que possamos comprar luvas ou bisturis”, completa. 

E os desafios não acabam aqui: Mogue e três outros patologistas forenses do hospital se contentam com salas rudimentares de autópsia, que consistem, em alguns casos, apenas de uma mesa e uma torneira de água.

Há anos os médicos vêm solicitando mais recursos para o exercício de seu trabalho. Apesar do número considerável de ocorrências, “nada muda”, diz Mogue. Segundo suas estimativas, todo o Estado de Camarões, com seus 27 milhões de habitantes, só emprega em torno de oito médicos forenses. Os crimes graves no país vão desde a morte de civis pelas Forças Armadas, no noroeste, até o assassinato de jornalistas e ataques de multidões contra membros da comunidade LGBTQ+.

“Justiça não poderá ser feita”

Camarões é um dos vários países da África que lutam contra a falta de especialização em Medicina Legal, uma área que inclui patologia forense – a investigação de mortes suspeitas por meio de exames post-mortem. Em Burundi, a medicina legal é “praticamente inexistente”, diz Bamtama Mossi, diretor do Hospital Regional de Rumonge, no oeste do país.

“Não temos médicos forenses especializados nessa área em lugar nenhum [de Burundi]”, relata Mossi por e-mail. “Quando somos chamados pela polícia ou pelos tribunais para ajudar a procurar provas, ficamos limitados à realização de exames físicos e testes adicionais, que não ajudam a esclarecer os fatos”, completa.

Morgue at Rumonge Regional Hospital, Burundi
O necrotério do Hospital Regional de Rumonge, em Burundi, um país que não tem nenhum patologista forense que possa realizar exames post-mortem para o sistema judiciário. CURML

Entretanto, com o país emergindo de décadas de conflito, continua Mossi, a Medicina Legal poderia exercer um papel importante: ao identificar as vítimas e estabelecer quando e como elas morreram, ela poderia ajudar “na reconstrução da verdade sobre as guerras”, ressalta.

O lugar que a Medicina Legal ocupa no contexto judicial se resume a uma coisa, diz Silke Grabherr, diretora do Centro Universitário de Medicina Legal Lausanne-Genebra (CURML): “O corpo é a prova mais importante”, aponta a especialista.

“Se você não for capaz de interpretar essas evidências – a causa e as circunstâncias da morte, se ela foi natural ou não natural –, a justiça não poderá ser feita”. 

O CURML é um dos sete institutos de Medicina LegalLink externo que, juntamente com os chamados sistemas médico-oficiais, oferecem serviços de patologia forense na Suíça (um país com aproximadamente nove milhões de habitantes). Atualmente, o Instituto está trabalhando com parceiros em Burundi, a fim de preencher a lacuna de conhecimento especializado nesta área no país.

O plano é, entre outras coisas, levar burundianos a Genebra para um programa de treinamento de cinco anos e, por fim, estabelecer o primeiro Instituto de Medicina Legal no país. Os parceiros estão buscando financiamento da Agência Suíça de Desenvolvimento e Cooperação para esse projeto ambicioso, com duração prevista de 12 anos.

A ideia do projeto surgiu depois que Mossi viajou para a Suíça em 2019, para participar de um programaLink externo de educação continuada de seis meses no CURML, criado especificamente para profissionais africanos. O curso oferece conhecimento prático e teórico em Medicina Legal e possibilita visitas a instituições jurídicas suíças, além de um estágio de curta duração.

O cerne do curso é um módulo sobre como projetar um serviço de Medicina Legal e encontrar recursos para isso, de forma que os alunos possam iniciar seus trabalhos assim que voltarem para casa.

“Basicamente, queremos que cada país na África disponha de estruturas para a prática da Medicina Legal”, diz Ghislain Patrick Lessène, coordenador do curso e diretor de medicina legal humanitária do CURML. Em seu país de origem, a República Centro-Africana, que tem seis milhões de habitantes, há somente um patologista forense exercendo a profissão a serviço do Estado.

Lessène, que estudou Direito em Genebra, aprendeu o ofício depois da morte de seu pai, em 2016, em meio a um conflito civil – sua família não teve acesso a uma autópsia, simplesmente porque não havia profissionais qualificados para realizá-la.

Após a morte do pai, Lessène envolveu-se diretamente na criação do programa de educação continuada, que é aberto sobretudo a profissionais – juízes, advogados, policiais, administradores atuantes nos Ministérios da Justiça e da Saúde, além de médicos. Anualmente, cinco a oito alunos, de uma turma de aproximadamente dez inscritos, têm sua taxa de matrícula de 7.180 dólares coberta pelo cantão de Genebra e pelo governo suíço.

“Essas pessoas são corajosas”

Os especialistas suíços não são os únicos de fora do continente a dar apoio à ciência forense na África. A ONU planejaLink externo ajudar a República Democrática do Congo a criar uma estratégia nacional de Medicina Legal. A Alemanha financiouLink externo a reforma do Instituto de Medicina Forense na Universidade de Cocody, na Costa do Marfim, que emite diplomasLink externo em Medicina Legal. Em Uganda, a Índia abriu um campusLink externo de sua Universidade Nacional de Ciência Forense.

A força da Suíça, diz Grabherr, está no alto nível de conhecimentos específicos. Enquanto alguns países exigem apenas um ou dois anos de treinamento em ciência forense para a qualificação de um médico legista, na Suíça os médicos forenses precisam estudar cinco anos após concluírem a graduação em Medicina. A Suíça também desenvolve pesquisas avançadas e dispõe de tecnologia nesse setor, como por exemplo no campo das imagens forenses, de forma que os médicos adquirem conhecimento de ponta para compartilhar.

Post-mortem angiography scanner at the CURML
Os participantes do programa de educação continuada têm uma amostra da tecnologia mais recente usada pelo Centro Universitário de Medicina Legal de Lausanne-Genebra, incluindo este scanner para angiografia post-mortem. CURML

O CURML possui 12 unidades que abrangem, entre outras especialidades, toxicologia, antropologia forense e genética forense. Um ponto importante é que os médicos legistas suíços recebem um salário, independentemente do número de autópsias que realizam ou de quais resultados elas geram. Esse sistema protege os médicos de pressões externas – ao contrário de lugares onde os patologistas são pagos por cada caso. “Isso significa que quanto mais casos aceitam, mais dinheiro recebem”, diz Grabherr. “Algo que, às vezes, se torna uma porta aberta para a corrupção”, completa. 

Em alguns países, os patologistas forenses podem ser pressionados a descartar uma autópsia ou a alterar as conclusões de seu relatório. Mogue diz ter sido ameaçada algumas vezes em Camarões, além de ter recebido ocasionalmente ofertas de suborno durante seus 11 anos de carreira. “Alguém que quer introduzir a patologia forense e a Medicina Legal em seu país é alguém que quer encontrar a verdade e combater a corrupção”, diz Grabherr. “Essas pessoas são muito corajosas”, observa. 

Trabalho em curso

No entanto, desenvolver esse conhecimento específico a partir da base exige mais do que coragem. Mossi menciona “desafios enormes, que obstruem o caminho da introdução da Medicina Legal em Burundi”.

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Collage of photos showing mothers looking for disappeared in Mexico

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“Estamos conversando constantemente com o governo sobre a necessidade de desenvolvimento nessa área”, aponta Mossi. No hospital de Rumonge, ele e seus colegas não ficaram esperando e, com o apoio do CURML, estão abrindo uma unidade de consulta forense para vítimas de violência. 

Mulheres vítimas de violência por razões de gênero são o principal alvo desse novo serviço – em Burundi, em torno de 48% das mulheres dizem já ter sofridoLink externo violência física ou sexual praticada pelo parceiro.

Segundo Lessène, as autoridades sanitárias estão se tornando cada vez mais receptivas à ideia de formar um conhecimento específico local sobre o tema. Atualmente, o país depende do Quênia no que diz respeito à prática da Medicina Legal.

De volta a Camarões, Mogue está também trabalhando para aumentar a conscientização sobre sua profissão. A médica legista participou do curso CURML em 2021, tendo arcado sozinha com as despesas de sua viagem à Suíça. Desde então, ela e seus colegas têm vislumbrado um novo caminho a ser trilhado, a fim de obter o serviço forense bem equipado que todos desejam: solicitar o financiamento da Agência Suíça de Desenvolvimento e Cooperação. No entanto, antes disso, eles precisam da aprovação do Ministério camaronês da Saúde –  um processo complicado e sem garantia de sucesso, alerta Mogue.

Sua viagem à Suíça, contudo, valeu a pena por outras razões. “Apesar da falta de recursos, pude aperfeiçoar minha prática cotidiana”, diz ela. A médica compartilhou o material didático com a polícia judiciária de Yaoundé, o que levou a uma melhor colaboração com essa instância. 

Mogue e seus colegas estão também enviando amostras para análise ao CURML – por algumas centenas de francos por caso. Há ocorrências em que as famílias dos falecidos pagam pelo serviço do próprio bolso, devido à falta de recursos estatais ou de um laboratório de toxicologia – uma especialização que Mogue gostaria de integrar a sua sonhada unidade de Medicina Legal. “Dessa forma, não precisaríamos mais enviar amostras para análise, com exceção das grandes”, diz Mogue. “Se tivéssemos apenas o mínimo, já seria ótimo”, conclui.

Edição: Virginie Mangin

Adaptação: Soraia Vilela

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